Sob o ponto de vista da prestação de serviços aos cidadãos, a saúde pública pode ser dividida, de maneira simplista, em três níveis: saúde primária, que consiste no atendimento básico em unidades básicas de saúde e pronto-atendimentos; a saúde secundária, que compreende as consultas de especialidades e a realização de exames clínicos mais complexos; e a saúde terciária, que envolve a urgência e emergência e o atendimento de alta complexidade, concentrada em cirurgias, traumatologia e no atendimento clínico hospitalar.
Como se sabe, a possibilidade de conceder à iniciativa privada os serviços públicos gratuitos, como os da saúde, foi uma das inovações promovidas pela lei das PPPs, que oportunizou a delegação dos serviços a partir da possibilidade do Poder Público realizar pagamentos pelos serviços prestados ocupando a posição de usuária indireta dos serviços. Se é verdade que o Estado tem o dever legal de garantir a prestação desses serviços à população, nada mais natural do que o Estado buscar meios para garantir a realização dos investimentos necessários e, em contrapartida, assumir a responsabilidade pela adequada remuneração daquele que foi contratado para prestar a atividade junto à população.
A experiência recente demonstra que as PPPs no setor de saúde estão concentradas na atenção terciária. Exemplos são o Hospital do Subúrbio, em Salvador (primeira PPP em matéria de saúde no Brasil e a única, até o presente momento, a delegar atividades clínicas ao particular), o Hospital Metropolitano, em Belo Horizonte, o Hospital Infantil de Vitória, a PPP de Hospitais do Distrito Federal, o Hospital de Trauma de Natal, a PPP dos Complexos Hospitalares do Estado de São Paulo e a PPP do Hospital de Clínicas de Sorocaba, também em São Paulo.
Poucos são os exemplos de PPPs na atenção secundária e primária, como o Centro de Diagnósticos por Imagem da Bahia e a PPP de Unidades Básicas de Saúde de Manaus e Belo Horizonte. A saúde básica, porém, é talvez um dos campos de maior potencial das PPPs na área de saúde. Isto porque qualquer solução estruturada de saúde pública passa, necessariamente, pela atenção de base e pela prevenção, além do fato de que os gastos com saúde muitas vezes oneram os Municípios em patamar muito acima do mínimo constitucional de 15%, chegando em alguns casos a superar a casa dos 30% do orçamento do Município.
Em geral, nota-se um aumento progressivo e insustentável da despesa com saúde dos Municípios, muito em razão de políticas de investimento sem base em um diagnóstico consistente nas demandas municipais efetivas e de uma tendência ao direcionamento dos investimentos municipais para a atenção terciária (alta complexidade), onde os custos de operação e manutenção são muito superiores. Essa política faz com que os Municípios dediquem seus recursos à construção e manutenção de hospitais, que representam alto custo de investimento e operação, deixando de investir na origem efetiva do problema: a falta de cuidados básicos com a saúde, que levam muitas vezes a complicações no quadro clínico de maneira desnecessária.
Na maioria das vezes, os problemas de saúde que demandam maiores despesas de tratamento poderiam ter sido evitados com medidas simples de prevenção, medicação adequada e acompanhamento clínico de rotina. Esta situação cria um círculo vicioso no qual a falta de cuidados na atenção de base acaba aumentando a demanda por atendimento de alta complexidade (agrava o quadro de saúde pública), o que leva à necessidade de investir cada vez mais em saúde terciária, drenando os recursos municipais para os gastos com saúde.
Por outro lado, o aumento progressivo da despesa geralmente é proporcional à redução dos níveis de produtividade e de qualidade da prestação dos serviços, uma vez que os investimentos são feitos sem um propósito planejado. Atua-se, na maioria das vezes, para correr atrás do prejuízo, cobrindo o déficit de atendimento na urgência e emergência e na alta complexidade, sem perceber que se está com isso “enxugando gelo”, ou seja, quanto menos atenção se dedica ao serviço primário, mais se percebe um aumento de demanda na terceira ponta.
Um exemplo é emblemático: sempre que o Município deixa de tratar adequadamente da saúde de um munícipe diabético, deixa de gastar com medidas de prevenção e controle da doença para, anos depois, dispender um valor muito superior com a internação desse munícipe em uma unidade hospitalar, onde os gastos são aproximadamente 5 vezes maiores. Esta é, de maneira grosseira porém verdadeira, a conta da ineficiência econômica dos serviços de saúde aplicada à realidade dos Municípios brasileiros, e é por essa, entre outras razões (ineficiência, falta de gestão, ausência de regulação, desvios de recursos, materiais e equipamentos, regime de servidores públicos altamente custoso etc) que as contas da maioria dos Municípios brasileiros encontram-se hoje asfixiadas pelo aumento exponencial dos gastos com saúde pública, situação esta que, se mantida por mais tempo, levará à inevitável insolvência dos Municípios no cumprimento de suas inúmeras outras obrigações face aos cidadãos (educação, saneamento básico, transporte urbano etc.).
É preciso, pois, dotar os Municípios de gestão e regulação eficientes dos serviços de saúde, de maneira a melhor identificar as necessidades (diagnóstico) e melhor alocar os recursos na prevenção, na atenção de base, o que fará com que os Municípios passem a concentrar seus recursos financeiros naquilo que efetivamente trará resultados, diminuindo os gastos com saúde (contenção de despesas) e buscando soluções através de convênios com os Estados para que os investimentos na atenção terciária, de alta complexidade, possam ser executados pelo ente que efetivamente possui capacidade financeira para fazê-lo (por exemplo, a construção e operação de Hospitais regionais).
Uma solução promissora, na verdade, está desenhada de forma bastante clara na Lei de PPPs, e encontra guarida na modalidade de concessão administrativa, por meio da qual o Município pode contratar uma empresa privada para a prestação dos serviços de apoio à saúde com os níveis de qualidade desejados – e de maneira gratuita à população –, onde seja possível efetivamente dotar o Município de infraestrutura adequada e implantar uma gestão inteligente do sistema de saúde municipal a partir do melhor entendimento e dimensionamento da oferta (rede de saúde pública) e da demanda (perfil epidemiológico) da população daquela determinada localidade.
É claro que, para tanto, alguns obstáculos ainda precisam ser superados, como o regime de servidores públicos, os limites de receita corrente líquida para aplicação em PPPs, a governança entre diferentes prestadores de serviços de saúde na cidade, especialmente na parte clínica, entres outros. Tais obstáculos, porém, colocam-se irrelevantes e acessórios em face da importância de se promover medidas verdadeiramente corajosas e eficientes na busca por soluções concretas para a resolução do problema de saúde pública na esfera mais próxima dos cidadãos que é a esfera Municipal. Não seria arriscado afirmar: a solução para a Saúde está nas mãos dos Municípios, e isto está longe de ser uma constatação de menor importância.
Do lado da iniciativa privada, embora a complexidade dos projetos nesta seara seja um desestimulador para o interesse de empresas no setor de saúde primária – especialmente em relação a outros setores da economia mais maduros, onde os riscos são mais conhecidos e o retorno mais garantido –, já existe no mercado quem enxergue para o setor de saúde privada com outros olhos, com foco na prestação dos serviços (e não puramente na construção de obras) e estude o setor com seriedade a fim de buscar mecanismos de melhoria da eficiência na prestação dos serviços, a custos mais baixos, com redução de despesas para os Municípios e, ao mesmo tempo, com aumento da qualidade e dos índices de atendimento e consequente redução dos indicadores de enfermidades e mortalidade.
Na verdade, iniciativas nesse sentido merecem ser aplaudidas e incentivadas, pois a solução para a saúde pública no Brasil passa necessariamente pela saúde de base, ou seja, passa necessariamente pelos Municípios e, também por isso, passa necessariamente pela formatação de parcerias entre o setor público e a iniciativa privada para viabilizar os investimentos e trazer as expertises de eficiência e gestão necessárias para que os munícipes, enfim, possam receber atendimento digno no cuidado humano mais básico que os serviços de saúde primária representam.
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