Artigo: Por que as novas concessões ferroviárias não são contratos de PPP?

O governo federal, por intermédio da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), divulgou recentemente as minutas de edital, de contrato e os anexos do primeiro trecho ferroviário que será licitado no contexto do Programa de Investimentos em Logística, anunciado em agosto de 2012 (Tomada de Subsídio nº 005/2013).

O trecho ferroviário localiza-se entre Açailândia, no Estado do Maranhão, e Porto de Vila do Conde, no Estado do Pará, tem 477 quilômetros de extensão e a estimativa de investimento é de cerca de R$ 3 bilhões.

Em primeiro lugar, é relevante mencionar o atraso em relação ao cronograma inicialmente divulgado pela União. Quando do lançamento do Programa de Investimentos em Logística, a expectativa era que as licitações de seis trechos ferroviários ocorressem em abril de 2013. Entretanto, por enquanto, apenas foram divulgadas as informações de um trecho (Açailândia-Porto de Vila do Conde) e ainda estamos na fase de apresentação das minutas dos documentos da licitação. É razoável imaginar que a publicação da versão final dos documentos ainda demorará alguns meses.

Outro ponto, sensivelmente mais relevante, é que, em agosto de 2012, o governo federal havia anunciado que a contratação dos investimentos privados em ferrovias federais seria por intermédio das parcerias público-privadas (PPP). Tudo indicava que os investimentos em ferrovias seriam intermediados por contratos de concessão administrativa, pois, de acordo com a apresentação do Ministério dos Transportes, a União contrataria a construção, a manutenção e a operação das ferrovias junto à iniciativa privada; e a VALEC compraria a capacidade integral de transporte dos trechos integrantes do Programa.

Uma das principais surpresas ao analisar o material recentemente disponibilizado pela ANTT foi verificar que o modelo contratual não é o da concessão administrativa ou o da concessão patrocinada (uma possibilidade em função da previsão da chamada “tarifa de fruição”), mas sim um contrato de concessão tradicional (Lei Federal nº 8.987/1995). Foi este o motivo da dúvida, estampada no título deste artigo: Por que as novas concessões ferroviárias não são contratos de PPP?

Na medida em que o próprio governo federal havia sinalizado o uso das PPPs e na medida em que as premissas do novo modelo de concessão ferroviária eram compatíveis com as PPPs, a dúvida parece pertinente.

Imagino que, nos últimos meses, diversas autoridades e servidores do governo federal envolvidos com o Programa de Investimentos em Logística devem se perguntar por que, depois de meses de tanto trabalho e esforço, a imprensa e o mercado preponderantemente reverberam opiniões negativas a respeito dos mais ou menos incipientes modelos de negócio divulgados pelo governo federal para aeroportos, portos, rodovias e ferrovias.

Dentro dos limites deste artigo, minha intenção é levantar hipóteses para as eventuais percepções negativas sobre o novo modelo ferroviário. Pretendo argumentar que as falhas de comunicação ou aparentes incoerências do próprio governo federal amplificam a percepção de risco sobre o novo modelo ferroviário.

Um dos fatores que chama a atenção no novo modelo é justamente o fato de que o governo federal não explicou porque as PPPs foram desconsideradas como modalidade contratual para os novos investimentos em ferrovias. Explicar esta alteração pode parecer supérfluo para alguns, mas pequenas cautelas no alinhamento do discurso ao longo do tempo contribuiriam para forjar uma percepção de que o governo federal é coerente e transparente na condução das decisões referentes ao Programa de Investimentos em Logística.

Diante do silêncio do governo federal, indico minhas hipóteses sobre os porquês da não utilização das PPPs para as concessões ferroviárias.

 

  • O processo de tomada de decisão do governo federal sobre as PPPs potencialmente reduz o poder dos Ministérios setoriais e, logo, tende a ser evitado

Na União, há um processo específico para que um projeto de PPP seja aprovado. O filtro decisório deste processo é formado pela tríade de Ministérios: Fazenda, Planejamento e Casa Civil (Decreto nº 5.385/2005). O modo como o processo foi desenhado acaba por não incentivar que Ministérios setoriais com maior capacidade institucional, política ou maior disponibilidade de recursos avaliem suas demandas de investimento por intermédio de PPPs.

Se um Ministério, como o dos Transportes, avaliar a possibilidade de satisfação de uma necessidade de investimento em logística via PPP, o projeto deverá tramitar pelo Comitê Gestor de Parceria Público-Privada Federal (CGP). Se o mesmo Ministério optar por utilizar outra modalidade contratual, como o contrato de concessão tradicional, não é necessário tramitar a pauta junto ao CGP.

Logo, quer seja para preservar autonomias, quer seja para tomar decisões mais céleres, as PPPs acabam sendo evitadas por Ministérios setoriais, ao menos por aqueles que lideram projetos que estão na pauta do dia do governo federal. Adicionalmente, a deliberação do CGP e suas atas pressupõem situação de tomada de risco por parte da Fazenda, Casa Civil e Planejamento e, talvez, tais pastas não estejam com apetite para formalmente tomar risco a respeito de projetos setoriais.

  

  • As PPPs exigem o estabelecimento de garantias da contraprestação do parceiro público a serem concedidas ao parceiro privado

Um dos alicerces das PPPs é a necessidade de que os contratos prevejam as garantias do poder concedente para a eventual situação de inadimplência do próprio setor público quanto ao pagamento das contraprestações. Este é um motivo para que as PPPs sejam evitadas no curto prazo pelo governo federal, pois a arquitetura das garantias federais encontra-se em transição e apenas quando estiver constituída a Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias S.A. – ABGF (nova estatal, cuja previsão de autorização está na Lei Federal nº 12.712/2012) é que, talvez, o governo federal tenha uma política clara sobre garantias para contratos de PPP. Hoje o Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas (FGP) está operacional, mas ainda não foi utilizado na prática.

Logo, o fato de que o governo federal não ter se posicionado sobre o tema das garantias é um desestímulo às PPPs[1].

 

  • Os contratos de PPP demandam transparência sobre suas contingências

As PPPs, por significarem o engajamento de recursos públicos no longo prazo, demandam estimativas e acompanhamento efetivo sobre as repercussões fiscais dos referidos contratos nas contas públicas. A este respeito, há a Portaria nº 614, de 21 de agosto de 2006, da Secretaria do Tesouro Nacional.

O desenho das novas concessões ferroviárias implica em riscos para o Tesouro Nacional, pois a União contratará integralmente a disponibilidade da capacidade operacional de transporte nas ferrovias. Para tanto, haverá aporte de recursos públicos na VALEC. Mesmo considerando que a VALEC obterá receitas ao fazer ofertas públicas da capacidade aos usuários das ferrovias, há um risco residual a ser suportado pelo Tesouro Nacional[2].

Como, salvo engano, não há uma Portaria do Tesouro Nacional sobre as contingências decorrentes dos contratos de concessão comum, há um incentivo para que tal modalidade contratual seja selecionada no lugar das PPPs, com o objetivo de que se evite a necessidade de comprovar a adequação do projeto à Portaria nº 614, de 21 de agosto de 2006 (aplicável às PPPs).

 

  • A motivação da PPP como modalidade contratual selecionada é percebida como mais complexa

A lei federal de PPP estipula em seu artigo 10 que a autoridade responsável pelo projeto deverá demonstrar em estudo técnico, entre outros aspectos, “a conveniência e a oportunidade da contratação, mediante identificação das razões que justifiquem a opção pela forma de parceria público-privada” e “estimativa do fluxo de recursos públicos suficientes para o cumprimento, durante a vigência do contrato e por exercício financeiro, das obrigações contraídas pela Administração Pública”.

Para dar outro exemplo, no caso das concessões patrocinadas, a lei federal de PPP estabelece que “as concessões patrocinadas em que mais de 70% (setenta por cento) da remuneração do parceiro privado for paga pela Administração Pública dependerão de autorização legislativa específica”.

Estes recortes são exemplos de regras da lei federal de PPP que geram a percepção de maior complexidade da modalidade contratual. Outras modalidades de contratação não  explicitam tantos ônus a serem satisfeitos ou limites a serem respeitados pela autoridade pública responsável pelo projeto, de modo cria-se uma circunstância em que as PPPs são evitadas.

 

  • O prazo de vigência de um contrato de PPP é limitado a 35 anos, incluindo a prorrogação

O limite do prazo de vigência das PPPs é incompatível com o modelo ferroviário divulgado pela ANTT, pois o prazo do contrato de concessão do trecho Açailândia-Porto de Vila do Conde é de 35 anos, com a possibilidade de prorrogação por mais 5 anos, o que seria inviável se o contrato fosse de PPP.

 

  • Há diversos requisitos para os contratos de PPP

A lei federal de PPP indica vários requisitos para os contratos de concessão administrativa ou patrocinada. Por exemplo, o compartilhamento com a administração pública de ganhos econômicos efetivos do parceiro privado decorrentes da redução do risco de crédito dos financiamentos utilizados pelo parceiro privado, os critérios objetivos de avaliação do desempenho do parceiro privado e o incentivo a que sejam estabelecidos mecanismos privados de solução de disputas (arbitragem).

Se alguma autoridade pública considerar a satisfação de uma necessidade de interesse público via PPP, terá que necessariamente se preocupar com o desenho meticuloso do contrato de concessão administrativa ou patrocinada. A riqueza de detalhes da lei sobre requisitos contratuais funciona como um verdadeiro checklist que deverá ser analisado pela autoridade pública e pelos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU).

Esta circunstância pode acabar incentivando que as autoridades públicas evitem as PPPs, por serem equivocadamente consideradas modalidades contratuais difíceis e inflexíveis. Ao que me parece, a lei federal de PPP apenas explicita etapas e requisitos que devem ser também analisados nas concessões tradicionais. Entretanto, o modo meticuloso com que a lei trata o contrato de PPP incentiva a utilização de outras modalidades contratuais, em que, aparentemente, não são necessárias tantas cautelas.

 

Como indicado anteriormente, a legislação brasileira prevê um modelo contratual (PPP) que parece ser extremamente compatível com o novo modelo de investimento em ferrovias que vem sendo desenhado pelo governo federal. Há inclusive a possibilidade de que sejam feitos aportes de recursos na fase de construção dos ativos em contratos de PPP.

A despeito disso, a decisão do governo federal foi no sentido de não recorrer ao contrato de PPP para as novas ferrovias. Houve uma opção pela criatividade ao desenhar um contrato de concessão tradicional, com subsídios na fase de construção (a chamada “antecipação do pagamento pela disponibilidade da capacidade operacional”) sem a existência de lei autorizativa.

Não é pela ausência de motivos que o mercado e a imprensa reproduzem maiores percepções de risco sobre alguns dos projetos em que o governo federal pretende engajar a iniciativa privada no provimento de infraestrutura e serviços públicos. O governo federal, infelizmente, não se desincumbe de motivar plenamente sua tomada de decisão, principalmente nos casos em que as premissas são alteradas durante o processo.

Depois da “contabilidade criativa”, temos agora a aplicação da criatividade no desenho de contratos de concessão. Contudo, a criatividade desnecessária ou sem fundamento aparente gera insegurança.

 

(Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do PPP Brasil. O portal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações).


[1] É importante mencionar, contudo, que no anexo 3 do contrato de concessão da ferrovia Açailândia-Porto de Vila do Conde há a previsão de garantias, a saber, os bens da VALEC, tais como títulos públicos transacionados em mercado; ou conta garantidora, mantida pela VALEC, dos recebíveis referentes aos créditos decorrentes da venda da capacidade operacional de transporte (item 6.5). Não se faz aqui uma análise da robustez da garantia, mas sim de sua existência formal.

[2] A própria Nota Técnica Conjunta nº 001/SUFER-DCN/ANTT afirma que: “25. Portanto, se o atendimento à política pública estabelecida demandar, a Valec poderá operar em prejuízo. Por isso, o modelo de concessão proposto não descarta a possibilidade de a Valec, eventualmente, operar com prejuízo em alguns trechos e por algum tempo, por entender que isto não significa um distanciamento do interesse público primário. Muito pelo contrário, como já exposto acima.

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