Artigo: A decisão do STF sobre regiões metropolitanas e os desafios das PPPs no setor de saneamento

Renato Fernandes de Castro

Rodrigo de Pinho Bertoccelli

 

 

O Supremo Tribunal Federal (STF) publicou, no dia 16 de setembro de 2013, o Acórdão referente ao julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.842-RJ, na qual se discute a Lei Complementar nº 87/97[1], de 16 de dezembro de 1997, e a Lei Ordinária nº 2.869[2], de 18 de dezembro de 1997, ambas editadas pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.

Em relação à Lei Complementar nº 87/97, sustenta o Partido Democrático Trabalhista - PDT, autor da ação, que com a criação da “região metropolitana”, o Estado do Rio de Janeiro, sob o argumento de tratar de interesses comuns ou metropolitanos, passa a administrar grande parcela das funções e serviços que a Constituição Federal reservou aos Municípios. Ao passo que, também em síntese, os artigos 8º a 21 da Lei Ordinária nº 2.869/97 seriam inconstitucionais porquanto transferem ao Estado do Rio de Janeiro a organização de abastecimento e distribuição de água e de esgotamento sanitário, bem como a fixação da tarifa e sua revisão ou reajustamento.

Os argumentos trazidos pelo autor da ação se sustentam na tese de que as referidas normas usurpariam, em favor do Estado do Rio de Janeiro, funções de estrita competência dos Municípios que integram a chamada “região metropolitana”, violando, desta forma, os princípios constitucionais do equilíbrio federativo, da autonomia municipal, da não intervenção dos Estados em seus Municípios, bem como o rol de competências municipais e comuns da União, Estados e Municípios discriminadas no texto constitucional vigente. 

Vale observar, inicialmente, que a matéria concernente à titularidade do serviço de saneamento básico em regiões metropolitanas é uma das mais espinhosas do Direito Público Brasileiro. Grande parte dessa celeuma decorre da ausência de uma definição clara pela Constituição Federal sobre o tema. O STF já firmou posicionamento acerca da competência e titularidade municipal sobre o serviço, com fulcro no artigo 30, inciso I e V da Constituição Federal[3]. Contudo, quando se trata de regiões metropolitanas, envolvendo uma pluralidade de Municípios, ainda permanecem dúvidas e divergências sobre a correta delegação e gestão da atividade. 

Após anos de debates, a mencionada Ação Direta de Inconstitucionalidade foi finalmente julgada, e considerada procedente em parte pelo STF, para declarar a inconstitucionalidade da expressão “a ser submetido à Assembleia Legislativa” constante do art. 5º, I; e do §2º do art. 4º, do parágrafo único do art. 5º; dos incisos I, II, IV e V do art. 6º; do art. 7º; do art. 10; e do §2º do art. 11 da Lei Complementar nº 87/97 do Estado do Rio de Janeiro, assim como dos arts. 11 a 21 da Lei nº 2.869/97, também do Estado do Rio de Janeiro. 

Embora a decisão do STF constitua um paradigma para as futuras interpretações a respeito de como a autonomia municipal pode ser atingida pela instituição da região metropolitana, sobretudo no que se refere à gestão dos serviços públicos de saneamento básico, ela ainda não resolveu todas as questões necessárias para que o Poder Público e o mercado formulem parcerias equilibradas e viabilizem importantes e necessários projetos para o país, além de já ter influenciado disputas e controversas antigas no setor[4]

Diante desse contexto, se por um lado a referida decisão proporciona clareza e segurança jurídica com relação a alguns aspectos da atividade, por outro ainda deixou dúvidas importantes que dificultam uma interpretação nítida sobre seus efeitos e alcance, impactando a modelagem e viabilidade de projetos de saneamento básico reclamados pelo país. Esse breve ensaio visa, portanto, apresentar ao leitor as particularidades desses dois lados. 

 

2.      Serviço de saneamento básico

 

Antes de nos enveredarmos pelo recente Acórdão publicado pelo STF no dia 16 de setembro deste ano, oportuno, de início, definir a expressão “serviço de saneamento básico”. Assim estabelece a Lei Federal n° 11.445, de 05 de janeiro de 2007: saneamento básico é o conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de (i) abastecimento de água potável; (ii) esgotamento sanitário; (iii) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; e (iv) drenagem e manejo de águas pluviais urbanas (art. 3º, inciso I, da Lei nº 11.445).

Muito embora já se tenha assentado na jurisprudência que esses quatro serviços são de interesse local e, por isso, nos termos do inciso V do art. 30 da Constituição, são de titularidade municipal, a principal questão que este texto propõe levar à discussão é se a recente decisão do STF esgotou todas as dúvidas a respeito da competência municipal para se prestar o serviço de saneamento básico nas regiões metropolitanas.[5][6]

Conveniente mencionar que esse questionamento surgiu em vista da Magna Carta não ter explicitado a competência da prestação dos serviços de saneamento básico prestados em regiões metropolitanas. O artigo 25, §3° estabelece que “poderão os Estados, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituída por Municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum”.

Ao constituírem as regiões metropolitanas, que são criadas por meio de lei estadual, a titularidade da prestação dos serviços de saneamento básico não deixa de ser, em momento algum, municipal, o que ocorre na verdade, é que o interesse local recebe o “status” de interesse regional ou intermunicipal.

Como bem acentuado pelo saudoso Prof. Marcos Juruena Villela Souto:

“(...) é importante chamar atenção para o detalhe que uma lei que institui Região Metropolitana pressupõe um fenômeno econômico, fático, social e urbanístico, que é a conurbação. Portanto, quando existe uma conurbação, os interesses estão interpenetrados, não se percebe mais onde termina um Município e começa outro, e aí não se pode falar mais em interesse predominantemente local; o interesse passa a ser regional, sendo isso que viabiliza escala entre todos.”[7]

 

Quando se trata de saneamento básico esse interesse é fundamental, haja vista que além da prestação dos serviços envolver investimentos vultosos, o fornecimento de água inadequado ou o despejo de esgoto realizado de forma irregular por um Município também afetará os demais integrantes daquela região, ou seja, não é um sistema de saneamento básico isolado, mas sim integrado.

Como se pode notar há um interesse comum que permeia os membros de uma região metropolitana em receber os serviços de saneamento básico com qualidade. Para que isso aconteça faz-se necessário ter uma integração entre os Municípios, Município-Pólo e Estado-membro, com o fim de viabilizar a organização, execução e planejamento das funções públicas de interesse comum.

Esse foi o entendimento proferido na decisão da Suprema Corte. Entretanto, não foi explicitado como se dará a organização das chamadas “entidades regionalizadas”, e a definição do interesse comum quando houver ou não o compartilhamento das instalações de abastecimento de água e/ou esgotamento sanitário entre os Municípios integrantes dessas “entidades regionalizadas”[8]. Além disso, não se estabeleceu a extensão dos efeitos da decisão, o que poderá trazer efeitos indesejados pelo STF. Todas essas questões serão esmiuçadas ao longo do presente texto.

 

3.      Da decisão do STF na ADI 1.842 publicada em 16/09/2013

3.1.O interesse comum nas regiões metropolitanas

 

Em primeiro lugar, importante esclarecer que a integração municipal do serviço de saneamento básico pode ocorrer tanto voluntariamente, por meio de gestão associada, empregando convênios de cooperação ou consórcios públicos, consoante os arts. 3º, II, e 24 da Lei Federal nº 11.445/2007 e o art. 241 da Constituição Federal, como compulsoriamente. Neste aspecto, o STF firmou o entendimento no sentido de que o interesse comum e a compulsoriedade da integração metropolitana não são incompatíveis com a autonomia municipal[9].

Nesse toar, a Suprema Corte ressaltou em mais de uma oportunidade, que o Município não pode escolher participar ou não de uma região metropolitana, microrregião ou aglomerado urbano. A instituição é prerrogativa do Estado e compulsória aos Municípios. Não obstante a sua inclusão, não lhe é retirada a sua autonomia, ou seja, deve haver compatibilidade do modelo para manter a autonomia constitucional dos Municípios nos assuntos relacionados ao saneamento básico[10].

Embora o STF tenha esclarecido haver autonomia municipal, mesmo em questões metropolitanas, a Corte não definiu critérios claros para se estabelecer como deve se realizar o compartilhamento na execução das funções públicas de interesse comum nessas regiões, o que pode proporcionar um ambiente de incerteza jurídica capaz de dificultar a modelagem e viabilidade de projetos de saneamento básico. Ao mesmo tempo, como determinou o STF, deixar ao juízo do legislador estadual o estabelecimento de tais critérios, poderá ensejar a mitigação da autonomia municipal, justamente o oposto do que foi assentado na própria decisão.

Em resumo, uma região metropolitana consiste num agrupamento relevante de Municípios, com a finalidade de executar funções públicas que, pela sua natureza, exigem a cooperação entre eles. Tal agrupamento, por imposição constitucional, somente pode ser criado por lei complementar estadual, o que, entretanto, não significa que caiba ao Estado as competências executivas de concretização dos chamados interesses metropolitanos.

Importante mencionar que no julgamento da ADI, o Supremo Tribunal Federal se posicionou claramente no sentido de que a criação de uma região metropolitana não significa simples transferência de competências para o Estado. O parâmetro para aferição da constitucionalidade reside no respeito à divisão de responsabilidades entre Estado e Municípios, que não precisa se realizar de forma paritária.

Neste aspecto, o Ministro Gilmar Mendes assentou, em recente artigo publicado após a decisão da ADI, que “o agrupamento de municípios junto com o estado federado detém a titularidade e o poder concedente, ou seja, o colegiado formado pelos municípios mais o estado federado decide como integrar e atender adequadamente à função de saneamento básico.”[11] E sobre a divisão de responsabilidade na região metropolitana, o Ministro esclarece no mesmo artigo que “obviamente não se exige que o Estado ou o Município-pólo tenham peso idêntico a comunidades menos expressivas, seja em termos populacionais, seja em termos financeiros. A preservação da autonomia municipal impede apenas a concentração do poder decisório nesses entes[12]”.

Ou seja, ainda que os municipalistas entendam que a atuação do Estado-membro deva tão somente se restringir a criação e estabelecimento de parâmetros da “entidade regionalizada”, o STF decidiu de forma diferente, pois o entendimento foi no sentido de que o Estado-membro deve participar das decisões tomadas na “entidade regionalizada”.

No entanto, embora o recente artigo do Ministro Gilmar Mendes, redator do Acórdão em debate, tenha fornecido elementos indicativos para o intérprete, o fato é que o próprio o Acórdão não deixou claro de que forma poderá se dar a atuação do Estado-membro, o que pode trazer certa insegurança, pois se a sua atuação for predominante, ou seja, se a sua vontade se sobrepor a dos Municípios, poderá haver uma concentração não desejada pelo próprio STF, que se posicionou no sentido de haver uma participação, mesmo que não paritária, de todos os membros.

Assim sendo, ainda que a Suprema Corte tenha deixado clara a autonomia municipal na hipótese de aglomerações urbanas, é certo também que não definiu os parâmetros mínimos de observância desta autonomia, ao mesmo tempo em que também não estabeleceu de que forma se dará a participação do Estado-membro, o que, muito provavelmente, gerará significativos embates na execução de projetos relacionados às funções públicas de interesse comum das aglomerações urbanas.

Quanto aos parâmetros e elementos que devem conter uma lei estadual ao criar uma região metropolitana, cabe mencionar o exposto pelo saudoso e sempre citado Prof. Helly Lopes Meirelles:

“O essencial é que a lei complementar estadual contenha normas flexíveis para a implantação da Região Metropolitana, sem obstaculizar a atuação estadual e municipal; ofereça a possibilidade de escolha, pelo Estado, do tipo de Região Metropolitana a ser instituída; torne obrigatória a participação do Estado e dos Municípios interessados na direção e nos recursos financeiros da Região Metropolitana; conceitue corretamente as obras e serviços de caráter metropolitano, para que não se aniquile a autonomia dos Municípios pela absorção das atividades de seu interesse local; e, finalmente, se atribuam à Região Metropolitana poderes administrativos e recursos financeiros aptos a permitir o planejamento e a execução das obras e serviços de sua competência sem os entraves da burocracia estatal. Sem estas características a Região metropolitana não atingirá plenamente suas finalidades[13].”

 

Dessa forma, entende-se que o STF foi muito feliz ao afirmar que é necessário evitar que o poder concedente se concentre nas mãos de um único ente para preservação do autogoverno e da autoadministração dos Municípios. Contudo, reitera-se, que a concentração somente será evitada mediante o estabelecimento de critérios de governança que assegurem a autonomia e participação de todos os Municípios, ainda que se estabeleça certo e razoável grau de preponderância ao Município-pólo, questão fundamental que não se pode deixá-la ao alvedrio apenas do legislador estadual.

Outra questão que também carece de esclarecimento pelo STF é em relação a personalidade jurídica da “entidade regionalizada”.

Sobre esse tema, os Ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski estabeleceram que a “entidade regionalizada” deve ser instituída com personalidade jurídica própria, com natureza territorial autárquica, ao passo que o ex-ministro Nelson Jobim posicionou-se no sentido de que essas “Entidades ou Conselhos” não são dotados de personalidade jurídica de direito interno, nem autonomia institucional.

O Ministro Joaquim Barbosa em seu voto expôs que “a titularidade de exercício de funções públicas de interesse comum passa para a nova entidade público-territorial-administrativa, de caráter intergovernamental”, mas também não estabelece de que forma esta entidade deve se organizar e caracterizar.

No mesmo sentido foi o voto proferido pelo Ministro Ricardo Lewandowski que assim dispôs acerca da questão: “Não me parece haver nenhum problema em delegar a execução das funções públicas de interesse comum a essa autarquia territorial, intergovernamental e plurifuncional, desde que a lei complementar instituidora da entidade regional lhe confira personalidade jurídica própria, bem como o poder concedente quanto aos serviços de interesse comum, nos termos do art. 25, § 3º, combinado com os arts. 37, XIX, e 175 da Carta Magna.”

De maneira distinta foi o posicionamento adotado pelo então Ministro Nelson Jobim que assim se pronunciou no seu voto: “o Conselho deve ser pensado desde que aja um ÓRGÃO DE DECISÃO, com representatividade de todos os MUNICÍPIOS, não atrelado a indicação de Governador ou Assembleia Estadual, e um ÓRGÃO EXECUTÓRIO – que não pode ser o ESTADO ou o MUNICÍPIO isoladamente – que coordenará a realização dos serviços públicos do interesse comum.”

De maneira intermediária o Ministro Gilmar Mendes posicionou-se em seu voto: “a estrutura colegiada deve regular o serviço de saneamento básico de forma a viabilidade técnica e econômica ao adequado atendimento ao interesse público. Ressalte-se que a mencionada estrutura colegiada pode ser implementada tanto por acordo, mediante convênios, quanto de forma vinculada, na instituição dos agrupamentos de municípios. Ademais, a instituição de agências reguladoras pode se provar como forma bastante eficiente de estabelecer padrão técnico na prestação e concessão coletivas do serviço de saneamento básico.”

Apesar desses claros posicionamentos adotados ao longo do julgamento da ADI, ao ser proferida a decisão pelo STF a questão não foi abordada no Acórdão, suscitando ainda dúvida aos intérpretes, aos Poderes Concedentes e ao mercado de saneamento básico, trazendo imprecisões quanto aos arranjos jurídicos que devem ser realizados ou adaptados pelos Municípios pertencentes a determinada região metropolitana.

Haja vista que esse ponto ainda traz dúvida aos intérpretes, por omissão do Acórdão, entende-se que cabe a Suprema Corte se pronunciar quanto a formação jurídica da entidade regionalizada. Poderá a sua constituição ficar ao alvedrio dos seus membros? Poderá esta ser uma Autarquia, Convênio, Comissão? Quais são os seus elementos jurídicos indispensáveis para a sua formação?

De fato, o mais relevante é que seja garantido à “entidade regionalizada” a condição de um importante fórum de debate entre os Municípios, Estado-membro, Município-pólo e sociedade civil, de forma a se estabelecer um canal de debate qualificado de tomada de decisões, exercendo suas funções normativas e deliberativas previstas em lei, que afetarão os serviços de saneamento básico prestado na região metropolitana.

 

3.2. Poder Decisório nas Regiões Metropolitanas

 

Ainda nesse contexto, o STF esclareceu que deve ser criado um órgão colegiado em cada região metropolitana, de acordo com as peculiaridades de cada regionalidade, com a participação dos interessados (Estado e Municípios), sendo que não pode haver concentração de poder decisório nas mãos de apenas um (poder de homologação), vedado o predomínio absoluto de um ente sobre os demais[14].

Restou clara, portanto, a posição do STF para que não ocorra o prevalecimento ou sobreposição do interesse de um determinado ente federativo sobre a decisão ou interesse dos demais entes da Federação.

Ocorre, contudo, como já ressaltado no presente artigo, que o STF não definiu parâmetros mínimos e mecanismos necessários a fim de que seja evitada a concentração do poder decisório no âmbito de um único ente da Federação, sobretudo em relação ao Estado-membro, razão pela qual problemas de ordem prática poderão ocorrer, capazes de proporcionarem incertezas na modelagem e viabilização de projetos em saneamento.

Com efeito, imaginemos que o poder de decisão de determinado Estado da federação tiver um peso de 50%, e o poder de decisão de cada um dos Municípios que integram a região metropolitana tiver um peso individual de 1% (considerando que seriam 50 Municípios), o Estado, em conjunto com apenas 1 Município, poderá eventualmente decidir independentemente da divergência de todos os demais Municípios que integram a região metropolitana, com nítida concentração de poder e absoluta dissonância dos fundamentos que formaram a convicção do STF.

É evidente que o exemplo acima é meramente ilustrativo. De qualquer forma, esta reflexão procura alertar para situações em que o poder decisório pode se concentrar, indiretamente, nas mãos de um único ente da federação. Nesse sentido, observa Wladimir Antônio Ribeiro[15]:

 

“Na prática, prevalecendo essa compreensão, o estabelecimento de uma região metropolitana transfere as competências municipais para o Estado, que as exercerá por meio do colegiado metropolitano. Com metade dos votos, basta o governador ter o apoio de um dos prefeitos da região metropolitana para impor a sua vontade ao conjunto de Municípios. Como é o próprio Estado quem define quais municípios integram as regiões metropolitanas, fica evidente que essa transferência de competências fica extremamente facilitada”.

 

Entende-se que não se deve exigir na lei estadual que instituirá os balizamentos da participação dos municípios na região metropolitana, que se estabeleça que o Estado ou o Município-pólo tenham o mesmo peso que municípios menores, seja em termos populacionais, seja em termos financeiros[16]. No entanto, deve-se buscar sempre preservar fundamentalmente a participação e autonomia municipal, impedindo a concentração do poder decisório e regulatório em um único ente nas regiões metropolitanas.

Outro ponto referente ao poder decisório que o Ministro Gilmar Mendes mencionou ao proferir seu voto foi no sentido de que a região metropolitana “terá 24 meses para elaborar um novo modelo de planejamento e execução das funções públicas de interesse comum nas regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões em seu território, estabelecendo uma gestão compartilhada entre os Municípios e o Estado, sem que se tenha a concentração do poder decisório em qualquer um dos entes federados, garantida, ainda, a participação popular no processo decisório".

Nesse compasso, os integrantes de determinada região metropolitana poderão estabelecer conjuntamente, também sem haver concentração do poder decisório, e de acordo com os balizamentos estabelecidos na lei estadual, um “Plano regionalizado” com o intuito de garantir um serviço de saneamento básico de qualidade a todos os Municípios dessa região.

Dessa forma, o “Plano regionalizado” buscará atender os interesses comuns de todos os Municípios da região metropolitana, pensando na integração de todo o sistema de saneamento básico, prevendo indicadores, investimentos, metas e objetivos comuns para todos os seus membros, viabilizando ganhos de escala, desenvolvimento urbano, uma prestação de serviços com maior qualidade e, consequentemente, ganho de qualidade de vida à população afetada.

Finalmente cumpre esclarecer que as decisões tomadas pela “entidade regionalizada” deve ter ampla participação de todos os seus membros, da população e dos agentes do mercado, pois poderá haver revisões significativas nos contratos vigentes, de forma a impactá-los econômico-financeiramente, o que poderá ensejar eventuais reequilíbrios pela entidade reguladora.

Em suma, repisa-se que sem critérios que assegurem a não concentração de poderes ao Estado-membro ou ao município-pólo, critérios que seriam absolutamente necessários à própria decisão de prever, há a possibilidade de ocorrer um amesquinhamento da autonomia municipal, o que deturparia os alicerces da própria jurisprudência do STF.

Portanto, entende-se que é necessário o estabelecimento de parâmetros, pelo próprio STF, a fim de tornar efetivo o julgado para que não haja concentração do poder decisório e, com isso, se estabeleça um cenário de insegurança jurídica que afasta o investidor interessado em viabilizar parcerias com o Poder Público.

 

3.3       Aplicabilidade da Decisão do STF

 

A decisão do STF não deixou absolutamente clara a extensão da aplicabilidade da decisão: se apenas para o Estado do Rio de Janeiro ou se para todas as hipóteses assemelhadas. Se por um lado o item 5 do Acórdãosugere uma abrangência nacional com efeitos erga omnes, por outro lado o item 6 do mesmo Acórdãorestringe expressamente a sua aplicabilidade somente ao Estado do Rio de Janeiro, modulando os seus efeitos para 24 meses.

Nos Embargos de Declaração apresentados[17] em face do último Acórdão do STF foi também suscitada a sua omissão quanto à aplicabilidade da decisão, ou seja, se o Acórdão se restringiria a declarar inconstitucionais dispositivos das leis fluminenses, ou se a sua aplicabilidade seria erga omnes, e dessa forma aplicável a todo o território nacional.

Na esteira dos embargos ainda pendentes de apreciação pelo STF, entendemos que se faz oportuno esclarecimento quanto a esse ponto, principalmente porque se a r. decisão for aplicável a todo território nacional, todos os Estados brasileiros que possuem região metropolitana terão o prazo de 24 meses, contados a partir da publicação do Acórdão, para executar o modelo metropolitano exigido pela Corte Suprema.   

No mesmo sentido, também não ficou claro se os efeitos da referida decisão alcançarão os contratos em curso e licitações eventualmente deflagradas no âmbito de regiões metropolitanas. Muito embora pareça evidente que os contratos celebrados, que obedeceram todas as formalidades legais estejam preservados por força da garantia constitucional do ato jurídico perfeito, uma posição clara do STF afastaria por completo qualquer insegurança jurídica a esse respeito.

Vale destacar que os prejuízos à Administração Pública, aos prestadores de serviços e aos usuários seriam vultosos caso esses instrumentos jurídicos atualmente vigentes fossem considerados prejudicados, isso porque além dos investimentos que já foram realizados tiverem de ser indenizados, os usuários também poderiam deixar de receber a prestação do serviço adequado.

Por derradeiro, os processos licitatórios em curso também poderiam ser considerados irregulares, o que seguramente traria insegurança jurídica às empresas que porventura possuam interesse em investir no setor, ou mesmo que tenham sido declaradas vencedoras em determinado certame licitatório, mas que tão somente aguardam o início da vigência dos instrumentos jurídicos que a elas outorgaram a prestação dos serviços.

 

4.      Conclusões

 

A decisão do STF não analisou quais os critérios de razoabilidade para se entender quando um Município deve ou não integrar uma região metropolitana, nem qual seria a governança dessa região metropolitana, bem como a definição do interesse comum quando houver ou não o compartilhamento das instalações de abastecimento de água e/ou esgotamento sanitário entre os Municípios integrantes dessa região.

Em outras palavras, embora o STF tenha decidido que o poder decisório não pode se concentrar em apenas um ente da Federação, a Corte não definiu parâmetros que o legislador estadual deve adotar para garantir que sejam resguardados os interesses de todos os seus membros.

Não se advoga a tese de que o STF deveria fixar critérios rígidos para se caracterizar o que sejam funções públicas de interesse comum e a governança da região metropolitana. Por outro lado, considerando-se que cada região metropolitana será um caso, de acordo com as realidades urbanas no país, a definição de parâmetros pelo STF aos legisladores estaduais seriam convenientes para uma maior clareza e segurança jurídica na modelagem e viabilização dos projetos de saneamento básico absolutamente necessários para o país.

De igual forma a decisão proferida pela Suprema Corte se omitiu quanto a extensão da sua aplicabilidade, e não deixou claro se ela se restringe tão somente às leis fluminenses, a todo o território nacional, ou se poderá somente servir de norte para as demais legislações estaduais.

Caso a aplicabilidade da decisão do STF seja a todo o território nacional, os Estados brasileiros que possuem região metropolitana deverão se adaptar à decisão no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, o que parece ser exíguo, haja vista a complexidade e significativos reflexos que tal fato proporcionará aos Municípios, Estados, Concessionários e população afetada.

Diante do que foi apresentado entende-se, portanto, que ainda subsistem questionamentos que precisam ser esclarecidos pela Suprema Corte para que haja estímulo a novos investimentos no setor de saneamento, seja para constituírem novas Parcerias Público-Privadas (PPPs), seja para novos Contratos de Concessão, Contratos de Programa e Convênios, baseado em um cenário de estabilidade e segurança jurídica.

Finalmente, não é demais lembrar que o vínculo entre o saneamento básico e saúde pública é tão estreito, inclusive no aspecto jurídico, que a própria Constituição Federal atribuiu competência ao SUS para participar na formulação da política e da execução das ações de saneamento básico[18]. Por essa razão é fundamental que o governo intensifique sua vontade política em desenvolver projetos de saneamento básico, ao mesmo tempo em que se estabeleça um ambiente regulatório positivo, cada vez mais claro e equilibrado, a fim de garantir uma maior e melhor participação do investidor privado nesses projetos.

 

(Este artigo reflete as opiniões dos autores, e não do PPP Brasil. O portal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações).

 

Referências Bibliográficas

 

BARROSO, Luís Roberto. Saneamento básico: competências constitucionais da União, estados e municípios. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ — Centro de Atualização Jurídica, n. 13, abril/maio 2002.

 

DALLARI, Dalmo de Abreu. Parecer sobre o Projeto de Lei n. 5.296 de 2005 sobre a regulação dos serviços públicos de saneamento básico. Revista Jurídica da Casa Civil da Presidência da República, Brasília, v. 7, n. 72, p. 1-20, maio 2005.

 

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 83.

 

MENDES, Gilmar Ferreira. Regiões metropolitanas e saneamento público. In ALMEIDA, Fernando Dias Menezes; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; MIGUEL, Luiz Felipe Hadlich; SCHIRATO, Vitor Rhein (Coord.). Direito Público em Evolução – Estudos em Homenagem à Professora Odete Medauar. São Paulo: Fórum, 2013.

 

RIBEIRO, Wladimir Antônio. Julgamento do STF sobre regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões: uma derrota dos municípios. In Revista Jurídica da Confederação Nacional de Municípios, Ano II, Brasília, CNM.

 

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Parcerias decorrentes do Programa Estadual de Desestatização. In Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, v. 59, 2005.

 


[1]Dispõe sobre a Região Metropolitana do Rio de Janeiro, sua composição, organização e gestão, e sobre a Microrregião dos Lagos, definindo as funções públicas e serviços de interesse comum.

[2]Dispõe sobre o regime de prestação de serviço público de transporte ferroviário e metroviário de passageiros no Estado do Rio de Janeiro, e sobre o serviço público de saneamento básico no Estado do Rio de Janeiro.

[3]Art. 30. Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

(...)

V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;

(...)

[4]Nesse sentido, tem-se acompanhado a disputa judicial entre a Companhia de Saneamento do Paraná – SANEPAR e a Prefeitura de Maringá, a qual pretende municipalizar o serviço de abastecimento de água e tratamento de esgoto, cujo prazo de execução do contrato, firmado em 1980, se encerrou em agosto de 2010. O Município, em novembro de 2010, extinguiu por nulidade o termo de prorrogação do contrato proposto pela SANEPAR, o que foi contestado pela companhia e consubstanciou os debates judiciais. O Judiciário, por enquanto, tem acolhido a tese sustentada pelo Município. De qualquer maneira, foi noticiado no dia 18 de outubro que a SANEPAR em sede recursal vai sustentar o entendimento do último Acórdão do STF no sentido de que a titularidade dos serviços de saneamento em cidades que integram regiões metropolitanas, como é o caso de Maringá, não é exclusiva do Município, logo a Prefeitura deveria compartilhar a decisão pela nulidade da prorrogação do contrato de concessão com a região metropolitana. (Jornal de Maringá – PR – últimas Notícias – 18/10/2013 – Justiça atende pedido da Prefeitura de Maringá e suspende acordo de acionistas da Sanepar - http://www.gazetamaringa.com.br/maringa/conteudo.phtml?tl=1&id=1418113&tit=Justica-atende-pedido-da-Prefeitura-de-Maringa-e-suspende-acordo-de-acionistas-da-Sanepar.  

[5]Importante salientar que a prestação dos serviços públicos de saneamento básico pode se realizar por diferentes modelagens jurídicas, a serem definidas pelo Poder Concedente: (i) por empresas estaduais; (ii) por empresas municipais; (iii) por empresas privadas; (iv) por consórcio público; (v) por Parcerias Público-Privadas (PPP).

[6]Atualmente no Brasil existem 60 regiões metropolitanas, distribuídas por todas as regiões do Brasil, que foram definidas por leis estaduais e federais (Wikipédia) http://pt.wikipedia.org/wiki/Regi%C3%B5es_metropolitanas_do_Brasil

[7]SOUTO, Marcos Juruena Villela. Parcerias decorrentes do Programa Estadual de Desestatização. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, p. 156

[8]Vale observar que existem sistemas de abastecimento de água e sistemas de esgotamento sanitário que são isolados, uma vez que suas instalações atendem somente a um Município e não se comunicam com as instalações dos demais Municípios. Em outras palavras, não há compartilhamento das instalações operacionais destes sistemas de abastecimento de água e de esgoto com os demais Municípios da região metropolitana, não havendo que se falar em serviços dependentes, concorrentes, confluentes ou integrados. Ainda há Municípios em que os sistemas de abastecimento de água são isolados e, contrariamente, os sistemas de esgotamento sanitário são compartilhados (ou seja, no primeiro caso – de água – o sistema só atende a este Município e não há compartilhamento com os demais Municípios da região metropolitana, enquanto o sistema de esgoto atende a este e outro(s) Município(s) da região metropolitana. Por fim, para determinados Municípios ocorre outra situação: há compartilhamento do sistema de abastecimento de água, mas o sistema de esgotamento sanitário é isolado.

[9]Nesse sentido, esclarece o Min. Gilmar Mendes: “O interesse comum e a compulsoriedade da integração metropolitana não são incompatíveis com a autonomia municipal. O mencionado interesse comum não é comum apenas aos municípios do agrupamento urbano. O caráter compulsório da participação deles em regiões metropolitanas, microrregiões e aglomerações urbanas já foi acolhido pelo Pleno do STF (ADI 1841/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 20.9.2002; ADI 796/ES, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 17.12.1999)”.

[10]Ressalta o Min. Gilmar Mendes:“Repita-se que este caráter compulsório da integração metropolitana não esvazia a autonomia municipal".

[11]Regiões metropolitanas e saneamento público. In ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; MIGUEL, Luiz Felipe Hadlich; SCHIRATO, Vitor Rhein (Coord.). Direito Público em Evolução – Estudos em homenagem à Professora Odete Medauar. São Paulo. Ed. Fórum, 2013. p. 695.

[12]Obra citada - p. 697.

[13]MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 83.

[14]Sobre esse aspecto, esclarece o Min. Gilmar Mendes: “A participação dos entes nesse colegiado não necessita de ser paritária, desde que apta a prevenir a concentração do poder decisório no âmbito de um único ente. A participação de cada Município e do Estado deve ser estipulada em cada região metropolitana de acordo com suas particularidades, sem que se permita que um ente tenha predomínio absoluto”.

[15]Julgamento do STF sobre regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões: uma derrota dos municípios. In Revista Jurídica da Confederação Nacional de Municípios, Ano II, Brasília, CNM, pág. 92.

[16]O Ministro Ricardo Lewandowski em seu voto citou com felicidade a forma de votação do Conselho da União Europeia, que conta atualmente com 27 membros e é o principal órgão deliberativo da União Europeia. Nesse Conselho, nas votações, os membros possuem pesos diferentes, calculados de acordo com a sua relevância política e econômica. A título exemplificativo, no Conselho França e Alemanha possuem peso 29, em um total de 345, ao passo que Chipre ou Letônia possuem nos seus votos peso 4.

[17]Observa-se que foram opostos Embargos de Declaração pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT, Partido dos Trabalhadores – PT, e pelo Partido Popular Socialista – PPS.

[18]Art. 200, IV da Constituição Federal.

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