Artigo: A decisão do TCU sobre o convênio entre BNDES e EBP

O Tribunal de Contas da União (TCU) publicou semanas atrás sua decisão sobre a legalidade do convênio de cooperação técnica entre o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES) e a Estruturadora Brasileira de Projetos (EBP).

A conclusão do TCU foi no sentido de que o relacionamento entre BNDES e a EBP, nos termos com que foi formalizado e executado, fere alguns princípios da administração pública, pois, na visão do tribunal, em resumo, o BNDES não poderia apoiar uma empresa privada na obtenção de autorizações pautadas no artigo 21 da Lei Federal nº 8.987/1995, assim como não poderia aportar recursos e expertise durante a fase de desenvolvimento de estudos de viabilidade decorrentes das referidas autorizações ou de autorizações obtidas pela EBP sem o apoio do BNDES.

Para o TCU, a tomada de decisão do BNDES (pela celebração do convênio de cooperação técnica com a EBP sem realizar um teste de mercado sobre a existência de outras empresas interessadas em também contar com o apoio do banco público no desenvolvimento de estudos de viabilidade de concessões e PPPs) não é válida do ponto de vista legal, pois, para o órgão de controle externo, não há singularidade nos propósitos da EBP enquanto empresa que desenvolve estudos de viabilidade no risco e que não atua de modo direto ou indireto nas licitações decorrentes.

A decisão do TCU é relevante, pois gera impactos no mercado brasileiro de parcerias público-privadas e concessões e, portanto, merece ser debatida em profundidade. De acordo com a decisão, o convênio de cooperação técnica entre BNDES e EBP deve ser extinto em 360 dias e, neste período, não é possível que novos engajamentos possam surgir entre as partes (o prazo, portanto, serve apenas para que os estudos já iniciados possam ser concluídos).

O inteiro teor da decisão do TCU é longo, complexo (pois aponta problemas de forma e de mérito) e merece ser lido por todos os profissionais interessados no mercado brasileiro de PPPs. Diversas questões ficam no ar: como o BNDES vai atuar na estruturação de projetos a partir de agora? O BNDES vai realizar procedimentos de seleção para apoiar a EBP ou outras empresas interessadas em participar de PMIs, como deveria ser feito na opinião do TCU? Se assim o fizer, vai estabelecer como regra que as empresas interessadas devem se autolimitar e assumir o compromisso de não atuar direta ou indiretamente nas futuras licitações decorrentes dos PMIs dos quais participarem? Quais são os impactos da decisão sobre a EBP? A EBP continuará atuando em projetos federais de grande porte ou terá uma atuação descentralizada, intensificando seu foco em projetos municipais e estaduais?

A finalidade desse artigo não é analisar pormenorizadamente todos os argumentos apresentados no inteiro teor da decisão, quer seja pelo BNDES, quer seja pela EBP, quer seja pela área técnica do TCU, quer seja pelo Ministério Público junto ao TCU, quer seja pelos próprios Ministros do órgão de controle. O objetivo é apenas compartilhar percepções iniciais sobre a decisão do tribunal.

A decisão traz consequências de naturezas diferentes: há aquelas que decorrem do fato de que o TCU consolidou seu entendimento sobre o uso do Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI); e há as consequências para a atuação do BNDES e da EBP.

Em relação às consequências que transcendem o BNDES e a EBP, o TCU reforçou seu entendimento sobre o PMI. Para o TCU, (i) o PMI é um instrumento que deve pressupor condição de igualdade entre as empresas cadastradas e que, portanto, têm interesse em apresentar os estudos de viabilidade solicitados pelo poder público; (ii) não é incômodo que empresas com interesse direto ou indireto na futura licitação participem do PMI; (iii) não há a convicção de que a qualidade da deliberação pública sobre concessões e PPPs é necessariamente melhor se o PMI contar com empresas desinteressadas na futura licitação; (iv) o que falta para a experiência brasileira com PMIs apresentar melhor qualidade é que haja gestores públicos bem treinados para conceber e implementar contratos de longo prazo, de modo que é essencial que a deliberação pública de recorrer ao PMI seja antecedida de estudo de pré-viabilidade, termo de referência de qualidade e que haja clareza sobre como o projeto de concessão ou PPP satisfará uma demanda de interesse público diagnosticada e compreendida pelo setor público. Em minha opinião, esses são os pontos principais extraídos da decisão no que diz respeito à visão do TCU sobre o uso do PMI.

No que diz respeito ao BNDES e à EBP, instituições essenciais para que tenhamos a cada dia que passa um mercado mais saudável, a vida seguirá normalmente. O BNDES, com a experiente equipe da Área de Estruturação de Projetos (AEP), continuará trabalhando nos projetos definidos como prioritários e, se assim quiser, realizará algum tipo de processo seletivo para definir as empresas com quem poderá colaborar daqui para frente no desenvolvimento de parcela dos seus projetos definidos como prioritários.

A EBP, por sua vez, seguirá participando de PMIs e colaborando com o poder público que queira implementar projetos via contratos público-privados de longo prazo. Do ponto de vista das instituições, portanto, os impactos da extinção do convênio de cooperação são pequenos.

Como nota pessoal, gostaria de compartilhar certo mal estar decorrente da leitura da decisão do TCU, algo como um sentimento de tristeza e decepção diante dos grandes obstáculos existentes para que tenhamos um mercado cada vez melhor para concessões e PPPs.

A leitura da decisão do TCU revela um pano de fundo didático sobre as mazelas do processo de decisão do poder público sobre contratos de longo prazo: cultura de desconfiança sobre relações público-privadas; voluntarismo público alicerçado em boa fé; e controle externo bacharelesco, atrasado e sem a pretensão de contribuir com a construção de alternativas. A leitura da decisão gera também uma angústia, de que tentamos resolver os problemas existentes com ferramentas muitas vezes inadequadas ou pouco efetivas.

A EBP, uma inovação institucional, que ajudou e ajuda a termos um mercado mais organizado, segue incompreendida, talvez em um momento em que sua existência seja mais necessária, pois o papel dos bancos públicos no financiamento de projetos público-privados de longo prazo tende a se reduzir.

Nesse sentido, a visão do TCU é no mínimo incompleta ao sinalizar, como argumento para a ilegalidade da celebração do convênio sem teste de mercado, que várias outras empresas de projetos poderiam ter interesse em desenvolver acordos de cooperação técnica com o BNDES.

A incompletude deriva do fato de que a EBP não é apenas uma empresa de projeto, como tantas existentes no mercado. A finalidade da EBP é única e fazer projetos é apenas um meio para sua missão, que é, justamente, desenvolver projetos que estejam alinhados com o aprimoramento do mercado de financiamento de longo prazo para concessões. Mesmo que isso não esteja explícito no discurso sobre a função da EBP, trata-se de uma decorrência lógica do próprio ato de desenvolver projetos público-privados de longo prazo: sem financiamento de longo prazo, não há concessão ou PPP.

A EBP tem o papel de, na medida em que estrutura projetos de concessão, aprimorar o desenho desses contratos com o intuito de possibilitar que, progressivamente, não apenas os bancos públicos, mas sim as instituições financeiras privadas tenham maior segurança para desenvolver soluções para o financiamento de longo prazo das concessões. Não é por acaso que seus acionistas são majoritariamente bancos privados.

A EBP, portanto, é uma peça fundamental para a solução de um dos maiores desafios do nosso mercado, na medida em que pode desenvolver soluções que, eventualmente, contribuam para que tenhamos um mercado de financiamento de longo prazo mais efetivo.

A preocupação do TCU, em tese, poderia decorrer do fato de que nem todos os bancos privados que atuam no país e que têm interesse em desenvolver serviços de financiamento de longo prazo são sócios da EBP, de modo que aqueles que são sócios eventualmente “se aproveitariam”, indiretamente, das competências e recursos da equipe do BNDES que colaborava via convênio de cooperação técnica com a empresa. Entretanto, mesmo nesse caso, haveria modos de mitigar a questão, além da solução drástica concebida pelo TCU.

Por exemplo, o convênio de cooperação técnica entre BNDES e EBP poderia ser mantido, desde que o BNDES estabelecesse uma estratégia para engajar bancos privados que não são sócios da EBP na temática do financiamento de longo prazo de concessões. Ou, observando a EBP, sua governança poderia incorporar a possibilidade de ampliação de sua base societária com outros bancos privados que manifestassem o interesse de serem sócios da empresa.

Em resumo, a decisão do TCU é relevante e trará alguns impactos na atuação do BNDES e da EBP, que seguirão como instituições necessárias no mercado brasileiro. A decisão do TCU também incentiva que outros pontos sejam explorados no debate sobre os desafios para a estruturação de concessões e PPPs, como, por exemplo, modos de gerir PMIs, conflito de interesse e riscos associados ao PMI, sucessos e insucessos no uso do PMI, assim como capacidade institucional do poder público.

Entretanto, o ponto mais importante é o “recado” dado pelo TCU sobre sua compreensão a respeito do PMI, com foco no papel fundamental desempenhado pelos gestores públicos responsáveis por conceber e dar andamento aos estudos de viabilidade de concessões e PPPs.

(Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do PPP Brasil. O portal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações).

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