Rodrigo Sarmento Barata
Foi publicado no Diário Oficial desta quinta-feira (24/10/2013) o Decreto nº 8.129, da Presidente da República, regulamentando o novo modelo de concessão ferroviária brasileiro.
Apenas para recordar os acontecimentos do setor, lembra-se que desde a privatização da RFFSA e da Fepasa, as concessões ferroviárias regem-se pelo modelo de integração vertical, no qual o concessionário da malha férrea administra a infraestrutura e explora, em monopólio, o transporte sobre sua malha. Para a integração ferroviária estão à disposição os mecanismos de tráfego mútuo e direito de passagem, regulados pela Resolução nº 3.695/11 da ANTT. Os contratos vigentes ainda contam com, ao menos, 15 anos de prazo regular, além da possibilidade de prorrogação já expressa em suas minutas.
O novo modelo, anunciado pelo governo federal em agosto de 2012, previa nova lógica ao setor, isto é, pretendia alterar a exploração das novas ferrovias para o modelo de open access, no qual a concessionária da linha férrea não explora o transporte ferroviário. Conforme divulgado pelas minutas de Edital e Contrato postas à Tomada de Subsídios, este modelo seria regido pela Lei de Concessões Comuns (Lei nº 8.987/95) – muito embora sua sistemática fosse muito parecida com uma Parceria Público-Privada (regida pela Lei nº 11.079/04). Na nova estrutura, o concessionário da malha ferroviária seria remunerado, em parte pelo usuário dos trilhos e, noutra parte, pela Valec, em função da disponibilização da capacidade ferroviária à estatal. Com essa disponibilização, a Valec promoveria leilões públicos desta capacidade aos operadores ferroviários (donos de carga, concessionários sob o modelo antigo e os novos operadores independentes) que, por sua vez, utilização os trilhos para realizar o frete.
Esta mudança abrupta deixou o mercado bastante desconfortável, especialmente por três fatores: a insegurança jurídica do novo modelo, a descrença na Valec e as incertezas na regulação, que deverá se adaptar à convivência de dois modelos de exploração distintos.
Quanto ao modelo regulatório, nada foi divulgado de forma oficial até o momento, o que torna o setor repleto de incertezas, inibindo o interesse ao investimento, especialmente se considerado o alto volume de capital necessário à construção de novas ferrovias.
Em relação à Valec, deve-se esclarecer que a Companhia Estatal foi constituída para construção de ferrovias, de modo que até a publicação deste novo modelo de concessões, sequer contava com área especializada em operação ferroviária (vide Relatório da Administração do exercício de 2012). Além disso, a Valec tem grande dificuldade em realizar seu orçamento, conta com prejuízos sucessivos, além de ter assumido passivo trabalhista da RFFSA e do também extinto GEIPOT. Soma-se a isso as constantes notícias questionando a probidade administrativa e irregularidades verificadas pelo TCU nas obras sob administração da estatal. Tudo isso gerou muita insegurança no mercado, posto que o insucesso da Valec na promoção de leilões da capacidade ferroviária culminará na falência deste novo modelo. Não é só isso: como a Valec terá de adquirir a capacidade ferroviária, deverá dispor de caixa para realizar os pagamentos. Considerando a situação atual da Companhia, assim como as precárias garantias ofertadas, a situação ficou ainda mais grave.
Para tentar resolver, falava-se no governo e no mercado sobre a criação de nova estatal para exercer este papel central no novo modelo ferroviário ou a própria alteração da estrutura e denominação da Valec para esconder esta reputação. Nenhum dos modelos parecer ter avançado até o momento.
O que avançou foi a tentativa do governo federal mitigar a insegurança jurídica que circundava o novo modelo de concessão. Com aparência de PPP e forma de Concessão Comum, o mercado, estudiosos e, para culminar, o Ministro Presidente do TCU levantaram desconfiança quanto à sustentação legal da modelagem divulgada pelo governo federal. Questões como o pagamento pela disponibilidade da malha, garantias ofertadas pela Valec, possibilidade de adiantamento dos valores devidos pela Valec, dentre outras características do modelo proposto, são peculiares das Parcerias Público-Privadas. O governo federal, contudo, enquadrou a concessão no modelo mais tradicional, da Lei nº 8.987/95.
Para tentar resolver o impasse, tendo em vista as dificuldades políticas de editar uma Medida Provisória ou avançar na velocidade desejada com um Projeto de Lei, o governo optou por regulamentar este novo modelo via Decreto. Aparentemente, não poderia ter agido desta forma por três razões constitucionais. A primeira: o Decreto é um mecanismo de regulamentação de normas existentes e não de sua criação e imposição. Assim, ao regulamentar a Lei nº 11.772/08 (criação da Valec), o governo está adicionando à legislação regras que jamais foram sequer esboçadas na lei regulamentada. Este, portanto, seria um regulamento autônomo (sem lei que o respalde) tratando de questões reservadas à legislação ordinária e aí vem as duas outras questões. O Decreto recém-editado trata de transporte (matéria reservada à lei federal – art. 22, XI, Constituição Federal) e de concessão de serviços públicos (cujas formas devem ser respaldadas por lei, nos termos do art. 175 da Constituição Federal). O Decreto, portanto, violaria a Constituição.
No entanto, caso o governo entendesse que seria desnecessária a edição de lei para respaldar o novo modelo (este é um tema que comporta interpretação), também não deveria ter editado o Decreto, pois deixa evidente sua incoerência e a adoção de uma medida apenas para tentar resolver um problema. Remendar a ordem jurídica, principalmente em temas de infraestrutura e serviços públicos regulados, é sempre a alternativa mais arriscada.
De todo modo, o Decreto está vigente e, em linhas gerais, estabelece as bases do novo modelo de concessão, em seu art. 1º. Os artigos 2º, 3º e 4º, trazem os novos mecanismos disponibilizados à Valec para fomentar e administrar o novo modelo ferroviário – competências estas jamais delegadas por lei à estatal. Temas como o adiantamento das tarifas de disponibilidade e as formas de garantia que poderão ser concedidas à iniciativa privada estão ali estabelecidos, mas sem grandes distinções do que já exposto nas minutas colocadas em Tomada de Subsídios pela ANTT. Por fim, o art. 5º do Decreto é ainda mais inovador e determina que o Poder Concedente poderá ordenar a ampliação das malhas já existentes, sob o modelo antigo de concessão, garantido o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos. Imposição como esta, colocada no final do Decreto, isolada de seu contexto e com aplicação incerta, pode gerar ainda mais complicações para o setor. O momento é de atenção.
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