Entrevista – Leonardo Toledo da Silva

Leonardo Toledo da Silva é advogado (sócio do Porto Lauand Advogados), mestre e doutorando em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. O tema de sua pesquisa de doutorado, em desenvolvimento, são os projetos em aliança.

Em 2011, Leonardo coordenou coletânea da Editora Saraiva cujo título é “Direito e Infraestrutura”. A obra, que conta com artigos de autores nacionais e estrangeiros, aborda tópicos relacionados aos contratos de EPC, contratos de aliança, arbitragem, equilíbrio econômico-financeiro e contratos de PPP, entre outros temas de interesse do chamado Direito da Construção. Os artigos de autoria do coordenador, na referida obra, apresentam os seguintes títulos “Contratos de EPC e os pleitos de reequilíbrio econômico-contratual” e “Aliança à Brasileira”.

A obra é bastante inovadora, pois dialoga com desafios que, no Brasil, não recebem muita atenção da literatura jurídica, mas habitam a produção acadêmica da engenharia de construção civil com certa frequência. Além disso, o Direito da Construção deveria interessar aos profissionais que se dedicam aos contratos de concessão, pois algumas das práticas contratuais entre empresas privadas da cadeia produtiva da construção civil poderiam contribuir com aprimoramentos na experiência brasileira com contratos de concessão.

Em função desse contexto, entramos em contato com Leonardo Toledo da Silva, que respondeu algumas questões, cujas respostas foram publicadas abaixo.

 

 

PPP Brasil. O livro “Direito e Infraestrutura” aborda temas relacionados a diversos tipos de contratos (entre eles, contratos entre empresas privadas e contratos de concessão). Quais são os temas mais recorrentes nos artigos que compõem a obra?

Leonardo Toledo da Silva. A ideia inicial do livro era suprir uma carência jurídica relacionada aos contratos complexos de implantação de grandes obras de engenharia e construção, sobretudo em âmbito privado. Por tal razão, a primeira parte do livro procurou abordar, especificamente, modelos de contratação para este universo das grandes obras, tais como EPC, EPC-M e Aliança. A segunda parte do livro trata de temas de direito público e privado que permeiam este vasto universo, tais como mecanismos de solução de controvérsias, PPP, questões sobre responsabilidade civil, aspectos ambientais, trabalhistas, previdenciários, dentre outros. O objetivo era criar uma fonte de ajuda aos profissionais desse mercado que, até então, tinham poucas fontes para pesquisar essa temática.

 

PPP Brasil. Quais são os aspectos do mercado de construção civil que precisam receber maior atenção da literatura jurídica? Por quê?

Leonardo Toledo da Silva. Atualmente, como mencionado anteriormente, há uma maior carência em relação a estudos jurídicos envolvendo modelos privados de contratação de projetos complexos de engenharia e construção. Ainda hoje, quando se pensa em construção, no ambiente jurídico, vem sempre a mente o contrato de empreitada ou o contrato de prestação de serviços. Ocorre que a indústria da construção já foi muito além, se modernizou e criou diversas ferramentas e modelos de implementação de projetos que demandam um novo arcabouço de conceitos jurídicos. E aqui não se quer dizer necessariamente que a legislação deva se atualizar em relação a tais temas. Na verdade, este ambiente está, e sempre estará, em mutação constante. Como mencionamos no livro “Direito e Infraestrutura,” no chamado “Direito da Construção, em sua faceta privatista, tal qual ocorre no Direito Empresarial, os usos e costumes, em geral, devem ter um papel de grande relevância nas soluções jurídicas escolhidas. Em razão disso, a legislação sobre a empreitada, por vezes, não terá grande relevância para que o operador do direito possa se orientar em sua atuação. Daí por que entendo que esta temática hoje precisa de obras que procurem revelar e sistematizar as práticas usuais dos grandes projetos de construção. Aliás, é curioso observar que, em negociações de contratos de construção, um dos argumentos utilizados recorrentemente pelas partes é o de que uma determinada solução ou cláusula é, ou não, praxe. Vale lembrar que, no ambiente privado das grandes obras, na maioria das vezes, as partes envolvidas no contrato estão em condição de igualdade, são bem assessoradas e tem capacidade de entender e negociar os riscos que estão dispostas a correr. Daí por que o princípio da autonomia da vontade é mais acentuado.

Em relação aos temas publicistas do Direito da Construção, há também uma necessidade de fortalecimento do debate jurídico sobre alguns institutos, como, por exemplo, as PPPs. A diferença em relação ao âmbito privado é que, uma vez que a legislação dita, de forma mais rígida, os modelos de contratação, o operador do direito fica um pouco menos perdido, tendo alguma fonte jurídica para sua atuação. Tal diferença não reduz, entretanto, a necessidade de constante discussão sobre modelos mais eficientes de investimento e de parcerias entre o setor público e agentes privados.

Em resumo, enquanto o âmbito privatista do Direito da Construção demanda um trabalho inicial maior de elucidação das ferramentas já utilizadas, o âmbito publicista demanda um trabalho de real questionamento e reflexão sobre os modelos adotados.

 

PPP Brasil. Você poderia explicar resumidamente as características básicas dos contratos de EPC e de aliança?

Leonardo Toledo da Silva. De maneira simplificada, o contrato EPC é a modalidade de contratação em que o construtor, chamado “epecista”, agrega toda a responsabilidade pelo fornecimento dos bens e serviços necessários à conclusão de um determinado empreendimento. Essas responsabilidades podem englobar desde a realização dos serviços de engenharia, suprimentos, construção, montagem, testes de operação, até a efetiva entrega do empreendimento, em conformidade com determinados requisitos de performance e qualidade. Usualmente, e sobretudo em alguns projetos financiados, o contrato EPC é celebrado por preço global, modalidade contratual que o mercado denomina EPC/Turnkey Lump Sum (preço global, com chave na mão).

O contrato de aliança, por sua vez, é uma modalidade mais recente de contratação. Trata-se de modelo complexo e atípico, que coloca, de forma drástica, a cooperação no centro do modelo de implementação de complexos projetos de infraestrutura e construção.

Os contratos de aliança utilizam um mecanismo de cooperação baseado no máximo compartilhamento de riscos entre construtor e contratante, buscando criar um ambiente que incentiva soluções criativas em projetos complexos, bem como reduzir ineficiências e conflitos entre as partes. Esse ambiente, segundo a experiência internacional, tem o potencial de reduzir custos e prazo de implantação dos empreendimentos. De maneira simplificada, o mecanismo consiste em criar indicadores de desempenho aptos a demonstrar se os resultados do projeto foram bons ou ruins. Ao final, o resultado positivo ou negativo é divido em partes iguais entre o contratante e o construtor. Outros princípios reforçam o modelo de cooperação. Pelo princípio “no blame, no dispute”, nenhuma das partes será considerada culpada por uma falha não intencional na execução do projeto. Outro princípio é o “open book”, segundo o qual todas as informações devem ser compartilhadas com total transparência. Um outro ponto de destaque, no modelo de cooperação proposto pela aliança, diz respeito à tomada de decisões por consenso.

 

PPP Brasil. A pesquisa jurídica sobre os contratos de concessão, a despeito de certa dificuldade para a obtenção de alguns documentos públicos no Brasil, conta com a facilidade de que o objeto de estudo “contrato de concessão” é um documento público. Entretanto, o contrato de EPC e de aliança, na medida em que são acordos entre empresas privadas, não são documentos de caráter público. Você considera que este contexto prejudica o desenvolvimento da pesquisa jurídica sobre o direito da construção? Como superar este desafio?

Leonardo Toledo Silva. Considero que, embora este seja um fator de limitação da pesquisa jurídica aplicada aos contratos privados de construção, há caminhos para o desenvolvimento desse universo jurídico. Fora do Brasil, o chamado construction law é um campo rico de trabalhos jurídicos. Além de muitos livros e artigos, há periódicos sobre estes temas, dentre os quais, destaca-se a revista trimestral International Construction Law Review, editada desde 1983. É crucial que nos utilizemos dessas fontes.

Além disso, algumas entidades internacionais publicam modelos-padrão de contratos de construção que podem ser utilizadas para compreensão de algumas práticas de mercado, como, por exemplo, os modelos publicados pela FIDIC, ICE, AIA, JCT, IChemE, dentre outros.

Por fim, outro possível caminho interessante é a realização de um diálogo entre profissionais de mercado e o ambiente acadêmico, algo que, por sinal, foi um dos objetivos do livro “Direito e Infraestrutura”, anteriormente mencionado.  Muitas universidades fora do Brasil possuem cursos sobre o Direito da Construção e há também, recentemente, uma iniciativa para a realização de um curso de pós graduação aqui no Brasil sobre o tema.

 

PPP Brasil. Quais são os aspectos dos contratos de aliança e de EPC que poderiam gerar, após as adaptações necessárias, inovações positivas nos contratos de concessão brasileiros?

Leonardo Toledo Silva. Toda a tecnologia contratual associada aos contratos EPC e de aliança pode, em tese, ser utilizada em contratações públicas. O contrato EPC, por exemplo, é um modelo que pode aumentar o grau de certeza jurídica sobre o preço e prazo de conclusão das obras do empreendimento, algo de grande valia quando tratamos da utilização de recursos públicos. O contrato de aliança, por sua vez, mostrou-se muito eficiente sobretudo em projetos de maior complexidade, com interfaces e riscos de difícil previsão. Um dado interessante é que, na Austrália, país que obteve maior sucesso com a utilização deste modelo, a maioria dos projetos em aliança possui origem em contratos públicos. O Estado de Victoria, na Austrália,  chegou a publicar algumas versões doProject Alliancing Practitioners Guide, que compila uma série de práticas relacionadas à implantação de projetos em aliança.

 

PPP Brasil. Você poderia tecer alguns comentários sobre o Regime Diferenciado de Contratações Públicas? A nova legislação incorpora algumas práticas do Direito da Construção (por exemplo, o chamado fast track construction), trazendo-as para o âmbito dos contratos administrativos? Qual sua opinião sobre a legislação do Regime Diferenciados de Contratações Públicas?

Leonardo Toledo Silva. Creio ser um teste válido. Acredito que o chamado RDC pode fornecer elementos para uma discussão mais ampla a respeito dos modelos de contratação pública. Embora tenha havido muita crítica ao RDC, especialmente por conta da questão do orçamento sigiloso contido no art. 6o da Lei 12.462/2011, o fato é que o regime geral trazido pela Lei 8.666/93 é notoriamente ineficiente, sobretudo por sua falta de agilidade e pelo excesso de burocracia e formalismo. O debate, por si só, é mais que necessário. Alguns aspectos do RDC merecem destaque, como a possiblidade de integração da contratação dos serviços de engenharia e construção, contida no art. 9o. Esta disposição reflete, por sinal, a concepção dos contratos EPC/Turnkey, que é de dificultar o empurra-empurra de responsabilidades entre os diferentes contratados. Cabe à administração pública manter diálogo aberto com o mercado para que possa fazer eventuais adaptações à forma de gestão e fiscalização dos projetos contratados de forma integrada.

 

PPP Brasil. Em recente artigo de sua autoria (“Contratos de aliança: estamos preparados?”), você indica percepções decorrentes de uma conferência sobre contratos de aliança, realizada na Austrália, e de sua experiência profissional com tais contratos. Neste texto, você menciona o documento “The Practitioners’ Guide to Alliance Contracting”, editado pela Secretaria da Fazenda do Estado de Victoria, na Austrália. O referido manual tem o objetivo de recomendar práticas consistentes para a adoção do modelo aliança pelas autoridades contratantes. Você considera que o contrato de aliança pode se tornar uma realidade para o poder público brasileiro? Quais os aspectos positivos do contrato de aliança em relação aos contratos de concessão? Quais as dificuldades que se pode enfrentar neste modelo de contratação?

Leonardo Toledo Silva.  Considero possível a utilização do modelo aliança também em âmbito público, embora talvez não em curto prazo. É verdade, no entanto, que seria necessário todo um processo de adaptação jurídica e de gestão pública para que pudéssemos fazer uso deste modelo no setor público.

Acredito que a abordagem colaborativa de contratação de projetos, tanto no setor público quanto privado, é a tendência de longo prazo, sobretudo para empreendimentos que apresentem muitos riscos e incertezas. Todos que participam de projetos mais críticos, estruturados em regimes tradicionais “não colaborativos” de contratação, percebem o quanto de energia é despedido com disputas e questões não afeitas ao objetivo central do projeto, que é concluir as obras, adequadamente e dentro do prazo esperado. Há aí um custo de ineficiência que, se capturado, pode trazer resultados excelentes para as partes envolvidas.

Há, no entanto, mesmo no setor privado, ainda muita insegurança, sobretudo dos contratantes, para utilização do regime da aliança. Algumas informações recentes de mercado dão conta de alguns insucessos de utilização deste modelo.

É preciso, no entanto, tomar cuidado com algumas armadilhas que o regime aliança pode representar. Alguns contratantes podem acreditar na falsa noção de que basta celebrar um contrato de aliança para que um empreendimento reduza o custo e o prazo para sua implantação. Em primeiro lugar, implementar uma aliança vai muito além de celebrar um contrato que preveja incentivos comuns. Há todo um trabalho de alinhamento corporativo e de recursos humanos a ser efetuado entre os membros da aliança. Na prática, constituir uma aliança se aproximará muito da tarefa de constituir uma Sociedade de Propósito Específico.

Além disso, é crucial uma mudança de cultura para o sucesso de um projeto de aliança. Toda a noção de “administração contratual” e “fiscalização”, que hoje, culturamente, é voltada para a posterior apresentação de pleitos deve ser evitada de ambos os lados. A aliança não pode dar margem a divisões de grupos, sob pena de se perder justamente aquilo a que se propõe: a redução de ineficiências. Se as partes não estiverem preparadas para esta mudança cultural, será melhor a adoção de modelos mais tradicionais de contratação.

Vale ainda esclarecer que não é todo e qualquer projeto que deve se utilizar do regime da aliança. Em verdade, para projetos em que o empreendedor tenha os riscos melhor equacionados, talvez não haja razão para fazer uso do regime da aliança.

Por fim, gostaria de parabenizar o portal PPP Brasil pela iniciativa de fomentar o debate relacionado à melhora da relação entre o setor público e privado, bem como agradecer à oportunidade de expor minhas ideias a este respeito. Obrigado.

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