A PEC 90 - que no plano institucional fornece o lastro para as reinvindicações do Movimento Passe Livre - propõe o transporte público de massa como um Direito Social equivalente a outras obrigações do Estado tais como o atendimento básico à saúde pública e o acesso à educação básica e fundamental.
Do ponto de vista fiscal equivale a que o Estado - através dos governos que se sucedem a cada quatro anos - passe a ter gastos de base fiscal (orçamentária) não apenas para complementar e subsidiar tarifa de transporte público de ônibus, trens urbanos e metrôs, mas, mais além, custear integral e totalmente a operação dos modais de transporte público de massa.
Requer, por óbvio, a aprovação de não apenas de políticas públicas de transportes, mas de Programas e Projetos permanentes voltados à equacionar a questão da mobilidade urbana de modo permanente. Como, aliás, deveria acontecer no que tange ao tratamento institucional, estratégico e operacional de equacionamento dos demais direitos sociais previstos na Constituição Federal.
As "vozes da rua" no fundo requerem a catarse de algumas das muitas contradições do modelo de desenvolvimento econômico brasileiro.
Ainda não se sabe "como" e se todos os que aderiram ao movimento das ruas compreendem que a redução de R$ 0,20 centavos no transporte de massa é um passo para a gratuidade das tarifas para todos; e que essa gratuidade deve requerer (por ser anacrônica), por exemplo, a redução dos estímulos para o acesso á compra e financiamento do transporte privado, individual.
E que o poder público se for atender a demanda até o limite da gratuidade, terá as seguintes alternativas:
01. Cortar na própria carne e diminuir gastos correntes evitáveis para não aviltar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) evitando o desinvestimento nas áreas em que existe obrigação constitucional (como a saúde e a educação): com isto, se abre - progressivamente ou de uma vez só - a "folga fiscal" para aumentar o tamanho do subsídio ao transporte público de massa até a integral gratuidade.
02. Drenar recursos da população que não usa o transporte público de massa (via o aumento combinado com a área federal da CIDE, a Contribuição sobre a Intervenção sobre o Domínio Econômico; ou via a implantação do pedágio urbano nos grandes centros; ou o aumento direto sobre a propriedade urbana (IPTU e ITBI) - preferencial ao aumento do ISS que pode ser repassado ao preço dos serviços; ou o aumento dos impostos sobre o licenciamento dos carros (IPVA) para gerar recursos para suplementar as gratuidades e subsídios demandados pela mobilidade urbana; ou a remarcação de outras taxas e contribuições sobre a renda dos munícipes; entre outras possibilidades).
03. Uma combinação das duas alternativas anteriores.
04. A revisão da política de concessões de transportes, fazendo-se a biópsia das concessões atuais a partir da aferição rigorosa se o transporte público de massa, para atender a demanda reprimida da sociedade, é autossustentável para o investidor privado - em modelos de concessão, PPP ou de outras modalidades de associação de capitais entre os entes públicos e privados.
05. A montagem de um Novo Modelo Público (por exemplo, criando uma Agência Reguladora de Transporte Municipal ou Metropolitana ou Estadual - dependendo do porte relativo dos municípios - para ser o Órgão de Política e Regulação dos modais de transportes; e uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) que detenha a posse dos modais e cuide de sua manutenção e preservação ao longo do tempo das concessões e os aluguem para o uso dos "Operadores de Transportes Públicos" que, por sua vez, seriam organizados em tantas SPE quanto as linhas ou conjunto de linhas a serem operadas isolada ou em consórcio com outras linhas de outros modais de transportes sem qualquer vínculo com as SPE dos locadores dos modais de transportes.
Para que esta possibilidade fosse real, no entanto, é preciso saber se assim estruturada a concessão de transporte de massa seria viável aos preços atuais.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, aos preços declarados, são geradas receitas de R$ 6,4 bilhões ao ano (entre tarifas pagas pelos usuários e os subsídios pagos pelo governo municipal), aí incluídas as receitas pagas por 7,8 milhões de passageiros/dia que fazem cerca de 200 milhões de viagens ao mês em 17 mil veículos (ônibus e vans) que recebem entre R$ 2,20 a R$ 2,30 de receita líquida de compensações de outros modais por passageiros/dia. Acrescido do subsídio da cidade para perfazer os R$ 6,4 bilhões de receita bruta ao ano (pouco menos que o orçamento da saúde na cidade, para se ter ideia do tamanho da conta).
Numa concessão de 20 anos, se forem feitas duas inversões para renovar integralmente a frota com veículos novos (no ano 01 e doze anos depois), e se garantir um retorno sobre a receita de 8,5% ao operador, os 7,8 milhões de passageiros dias que fazem 200 milhões de viagens ao mês serão concessionários de uma operação que tem uma Taxa Interna de Retorno Real ao ano (TIR) de 11%, sem qualquer alavancagem de recursos financeiros via o financiamento do BNDES, por exemplo.
Se o Modelo for como o sugerido na Alternativa 05 - onde se separa a atividade do investidor em modais da atividade da operação das linhas, aquele compra, mantém e aluga os modais aos operadores, a TIR da Concessão sobe para 9% reais ao ano (a aquisição dos modais se feita pelas linhas do BNDES custa 2,5% ao ano; se desonerados o impostos de aquisição dada a nova prioridade para atendimento do novo direito social de transporte, a margem para o dotador dos modais - público, privado ou misto - pode ser ainda mais interessante em termos de retorno.
A adoção da 5a alternativa, pode ter parte de seus custos ainda mais reduzida através do pagamento de outorgas que podem ser cobradas dos operadores privados dada a atratividade das linhas: e o pagamento das tarifas pode ser feita de forma diferenciada (entre os que podem e os que não podem pagar, mediante a escolha da sociedade tal como definido pela política pública e pelo Projeto de Mobilidade) ou pode ser feita mediante uma parcela (parcial ou total) paga pelo Setor Público mediante Concessão Patrocinada ou Concessão Administrativa - conforme o caso - desde que o ente público tenha revisto suas prioridades de gasto corrente e tenha achado margem fiscal para bancar os custos da assunção total ou parcial das gratuidades demandadas pela população.
A Prefeitura poderia fazer um chamamento público para empresas de logística de transporte disputar a licitação como dotadoras da frota e de sua manutenção; operadores de transporte poderiam se candidatar a operar as linhas propriamente ditas. Ou permitir que as figuras de posse dos modais se confundisse com a de operador dos modais, desde que atingido um preço mínimo de passageiro/dia.
Sem esquecer do papel da cidade em fazer convênios com a área federal para trazer os recursos (que hoje não tem) para fazer os corredores de ônibus e os ajustes no viário da cidade para garantir a fluidez do tráfico.
Mas – de novo – quem pagará a conta?
O governo abrindo margem de mais R$ 6 bilhões ao ano no orçamento para acomodar o novo direito social do transporte urbano?
Se o pessoal que quer a gratuidade (transporte coletivo) conseguir “fechar” a questão com os que hoje estão na ponta do transporte individual, o Estado (e os governos) não terá escolha: terá que fazer ou estruturar as novas concessões e ainda pagar a conta “sozinho”: quer dizer, rearranjando as contas sem transferir o ônus para todos ou para alguns segmentos da cidade (como sugerido na alternativa 02).
Operando o transporte (como já fez) ou refazendo as concessões em novos termos.
Assim como na cidade de São Paulo, os demais entes federados deverão não apenas ouvir (sic) as ruas: mas, escutar (!) o que as propostas atreladas à PEC 90 afinal significam em termos de finanças públicas.
O confronto dessas posições – curiosa e talvez ironicamente – deverá se dar em setembro, no início da primavera verdadeira: aquela que todo ano acontece em setembro e não em junho (época das manifestações).
E um dos cenários possíveis deverá prevalecer: o governo pode apostar em dividir o movimento jogando a conta para o transporte individual; ou ter que realizar o mais formidável esforço de reorientação de finanças públicas que já se teve notícia em um único ciclo de governo, se a escolha da população irmanar quem tem que usar o transporte coletivo e quem pode improvisar via o transporte individual.
O resultado do embate, por outro lado, pode ser didático para os governos que fazem ouvidos moucos (ou são autistas) para garantir a promessa e a entrega dos outros direitos sociais previstos pela Constituição como o atendimento da saúde e a educação básica.
Tudo leva a crer que o governo para dizer sim ou não às ruas, terá que abrir dados e esclarecer margens e rentabilidades envolvidas de fato na questão do transporte público de massa hoje existente sob a forma de concessão pública em seu mais amplo espectro (de concessões plenas a concessões patrocinadas e permissões).
Pode não acontecer nada demais (com a locupletação de todos, como reza a nossa irritante tradição do jeitinho, do “veja bem”, do clientelismo e de tantas outras taras comportamentais que há tanto infelicitam a nação).
Mas, pode acontecer tudo o que parece ser improvável: a primavera pode realmente ser muito mais do que uma mera mudança no que ficou conhecida como equinócio da primavera. Onde o dia tem a mesma duração da noite.
Para o país, seria ideal que a claridade dos dias fosse sempre mais duradoura do que a escuridão das noites, shakesperianeamente falando, por óbvio...
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