Artigo: Proibição de empresa ganhar mais de um lote em licitação de obra, concessão ou PPP

Considere-se a hipótese de uma licitação por menor preço de obra metroviária a ser contratada pelo Poder Público em um mercado dominado por 2 empresas de construção que possuem completa atestação técnica e capacidade financeira para realizar a obra. Considere-se ainda que,  para encorajar entrantes nesse mercado, o Poder Público resolva dividir a licitação em 4 lotes, a serem licitados simultaneamente, e estipule a regra de que nenhum grupo econômico possa vencer mais que um lote.

O grande benefício desse arranjo é encorajar entrantes, que de outra forma (se a obra fosse divida em apenas 2 lotes) talvez não participassem da licitação. A perspectiva de que haverá 2 lotes da obra que não poderão ser ganhos pelas 2 empresas já consolidadas nesse mercado incentiva entrantes a participarem nas licitações, diante de chances reais de ganharem pelo menos 2 lotes. O aumento da competição impacta o preço final da licitação, que tenderá a ser melhor para o Poder Público.

Por outro lado, quando analisadas as propostas da licitação, é possível que uma mesma empresa ofereça o melhor preço em mais que um lote. Nesse caso, em vista das regras do leilão, a empresa que ofereceu o melhor preço em mais de um lote será forçada a renunciar a um deles (qual deles dependerá das regras do leilão).

Nesse contexto, ao anunciarem-se os resultados do leilão, ficará claro que, por conta das regras do leilão, em alguns dos lotes da licitação, o Poder Público não poderá assinar contrato com aqueles que ofereceram a melhor proposta de preço. Ficará, então, claro exatamente quanto o Poder Público perdeu em cada um dos lotes em que isso aconteceu (a diferença entre a melhor proposta e a proposta do participante da licitação que poderá assinar o contrato).

Essa diferença de preço, de um ponto de vista político, poderá ser caracterizada – e não me espantaria que isso fosse feito, inclusive, pelos órgãos de controle – como “perda do Poder Público”, “prejuízo ao patrimônio público”, a ser evitado e punido por meio de ação civil pública e ação de improbidade administrativa.

A situação hipotética descrita retrata o contexto em que os benefícios do modelo de leilão que encoraja os entrantes são intangíveis (porque é difícil calcular qual o ganho gerado pelo aumento da competição), enquanto os malefícios são tangíveis (porque o valor perdido pelo Poder Público por não poder contratar com o primeiro colocado em alguns dos lotes é mensurável).

Esse tipo de situação já aconteceu no Brasil (recentemente, na licitação de obras da Linha 05 do Metrô de São Paulo) e correu o risco de acontecer de novo na concessão dos aeroportos – cujo edital proibia qualquer grupo econômico de assinar mais que um dos 3 contratos que foram licitados.

No caso dos aeroportos, essa regra tinha um fundamento adicional que era o fato do aeroporto de Cumbica (Guarulhos) ser em tese concorrente do aeroporto de Viracopos (Campinas). Por isso, seria interessante ao Poder Público ter operadores de grupos econômicos diversos, de maneira que houvesse competição não apenas pelo mercado (na licitação), mas também no mercado (entre os dois aeroportos).

Da experiência internacional, me vem a cabeça duas situações semelhantes: a venda do direito de uso do espectro de rádio na Nova Zelândia na década de 90; e, na Austrália, a venda do direito de uso do espectro 3G de telefonia celular. Em ambos os casos, o problema aconteceu na aplicação do Leilão de Vickrey (leilão pelo qual vence o primeiro colocado, mas paga o preço do segundo colocado). Está fora do escopo desse artigo explicar a razão porque se adotou nesses e em outros casos o Leilão de Vickrey. Mas nele, acontece a mesma situação acima descrita: o Poder Público, em virtude das regras do leilão, assina o contrato com o valor da segunda melhor proposta e não com o valor da primeira.

Em ambos os casos citados da experiência internacional, assim como no da Linha 05 do Metrô de São Paulo, o Poder Público, e especialmente os agentes governamentais responsáveis pelos projetos, foram submetidos a questionamento público na imprensa e, em alguns casos, a processos judiciais sobre o prejuízo supostamente causado ao Poder Público por conta do uso desses sistemas de leilão.

Tenho me pronunciado sempre a favor de dar ao Poder Público ampla liberdade para, em cada processo de licitação, mediante análise do mercado e dos riscos específicos do projeto, estruturar a licitação da forma que lhe parece mais adequada.

Contudo, creio que a repercussão dos casos em que o Poder Público estabeleceu regras que o levava a não contratar com o valor da melhor proposta oferece lições a serem aprendidas e consideradas na tomada de decisão sobre a estruturação das licitações.

Acredito, sobretudo, que os aspectos políticos são inerentes às licitações de grandes projetos e não devem ser tratados por nós, técnicos e teóricos do assunto, como aspectos exógenos às decisões sobre modelagem dos leilões.

Modelos tecnicamente irretocáveis, mas que politicamente, na experiência acumulada em diversos contextos, já tenham se mostrado inviável, devem ser avaliados como arriscados e a decisão da sua adoção ser tomada com atenção a tais riscos.

A grande dificuldade, contudo, ser adequadamente feita nos processos licitatórios no Brasil está no fato de que os nossos especialistas em licitações (cuja formação é normalmente jurídico-tradicional) preferem dissertar sobre hermenêutica legal, que sobre a experiência real vivida (e acumulada) nas licitações de grandes projetos. A riqueza da amálgama entre problemas jurídicos, econômicos, financeiros, práticos e políticos produzida por essas licitações não é explorada e disseminada, de maneira que esse conhecimento termina restrito a pouquíssimos especialistas, e raramente alcança as instituições de ensino para ser transmitido aos futuros técnicos e políticos que enfrentarão algum dia essas decisões.

Junte-se a isso o fato de decisões nodais sobre grandes licitações serem ainda tomadas muitas vezes por agentes públicos (técnicos e políticos) com pouca experiência e sem formação nas questões que permeiam o mundo das grandes licitações e, por isso, com dificuldades de acesso a esse conhecimento. 

 

(Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do PPP Brasil. O portal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações).

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