Artigo: Risco, retorno e flexibilidade nas concessões

Introdução

Um dos principais desafios relacionados à gestão dos contratos de longo prazo entre o poder público e a iniciativa privada é o denominado “hold-up problem”. Esta expressão, utilizada com frequência na literatura econômica sobre teoria dos contratos, refere-se, no contexto dos contratos de concessão, à circunstância de que o poder concedente e a concessionária, assim como a agência reguladora (quando esta existir), estão “atados” um ao outro durante o prazo de vigência do contrato.

Parte-se da premissa de que contratos de concessão são incompletos e que é difícil estabelecer regras prévias sobre os investimentos necessários e, ao mesmo tempo, evitar que as partes tenham condutas estratégicas, com o objetivo de maximizar seus interesses, durante a vigência da concessão.  

Por mais que ambos (concedente e concessionária) busquem a satisfação de interesses próprios e nem sempre convergentes (o interesse público e o interesse privado – ou, para ser menos maniqueísta, o melhor uso dos recursos públicos e privados alocados ao projeto), a satisfação dos respectivos interesses é interdependente, de modo que desequilíbrios provocados pela preponderância de um dos interesses podem gerar efeitos negativos na satisfação do outro.

Por exemplo, se a concessionária pretender maximizar o retorno do capital investido de modo a prejudicar o nível de qualidade acordado para os serviços públicos delegados, a consequência negativa para o interesse público é óbvia: a qualidade dos serviços prestados seria menor do que aquela estipulada pelo poder concedente e aceita pela concessionária. Do mesmo modo, se o poder concedente demandar um desempenho melhor do que o acordado, sem se preocupar em estimar os efeitos de tal medida nos investimentos, custos e tarifas do projeto, a consequência negativa para o interesse privado seria uma renda efetiva menor do que a esperada (menor retorno do capital investido pela concessionária).

Estes exemplos servem apenas para contextualizar a interdependência entre as atitudes do poder público e da iniciativa privada nos contratos de concessão. O objetivo deste artigo é apresentar ideias preliminares sobre o tema da legitimidade da renegociação de contratos de concessão em função de desequilíbrios provocados por eventos decorrentes de riscos alocados à concessionária.

 

Dificuldades da concessionária em função da gestão dos riscos a ela alocados

Outra questão derivada da interdependência entre os interesses do poder concedente e da concessionária é a circunstância de que, em última instância, uma concessionária que não esteja prestando serviços públicos adequados, mais cedo ou mais tarde, gerará um problema cuja responsabilidade de gestão é do poder concedente. Refiro-me à extinção do contrato de concessão.

Imaginemos uma concessão rodoviária cujo prazo de vigência é de 25 anos, que não prevê o instituto da revisão ordinária e em que o risco de demanda foi alocado à concessionária. Neste caso, se a demanda efetiva for menor do que a demanda esperada, a concessionária, em regra, não terá direito ao reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. A despeito do fato de que a demanda menor tenderá a reduzir sua expectativa de retorno do capital investido, a concessionária terá que arcar com tal consequência negativa, restando aos seus acionistas venderem suas participações acionárias na sociedade de propósito específico (SPE) para que, então, possam buscar negócios com perfis de risco e de retorno que julgarem mais adequados.

Pressupondo que a queda da demanda é relevante e perene, a concessionária não terá incentivos para aportar capital no projeto, realizar os investimentos necessários e manter em nível adequado a prestação dos serviços públicos que lhe foram delegados. Logo, a perda das condições econômico-financeiras e a deterioração da qualidade dos serviços prestados pela SPE podem chegar a um ponto em que se concretizará uma situação compatível com a extinção do contrato.

Um dos dilemas decorrentes da situação de interdependência entre o poder concedente e a concessionária envolve a possibilidade de que dificuldades econômico-financeiras da concessionária possam prejudicar o interesse público que o poder concedente se empenha em satisfazer. Neste caso, haveria espaço para o poder concedente “socorrer” a concessionária em função de consequências negativas de eventos derivados de riscos alocados à própria concessionária?

 

Questão meramente acadêmica?

Esse problema não é fictício ou meramente acadêmico. No Brasil, recentemente ganhou destaque na imprensa o caso da CELPA, distribuidora de energia elétrica no Estado do Pará. A concessionária, pertencente ao Grupo Rede Energia, solicitou pedido de recuperação judicial em 28 de fevereiro de 2012. O objetivo da medida, em tramitação no judiciário, é normalizar a situação financeira problemática em que a concessionária encontrava-se. Por enquanto, não foi definida nenhuma medida do poder concedente para contribuir com a melhoria das condições financeiras da concessionária.

Questões similares também estão na agenda do poder público em outros países. Na Espanha, diversas concessões rodoviárias estão enfrentando problemas com a redução da demanda em função do fraco desempenho econômico do país. Atualmente, o governo espanhol estuda medidas para melhorar a situação financeira de algumas concessionárias.

No Reino Unido, o debate se volta ao tema do custo de capital. Depois da crise financeira, o custo de capital ficou maior para a iniciativa privada e, então, surgiu a hipótese de que o governo britânico poderia retomar o risco de financiamento em algumas concessões. Em consulta pública realizada em dezembro de 2011, um dos pontos levantados pelo Ministério da Fazenda britânico envolveu a participação do governo no financiamento das PPPs. Quando o governo britânico publicar os resultados da consulta pública, talvez seja possível verificar, no novo modelo de PPPs do país, a possibilidade de alocação parcial do risco de financiamento ao poder público.

 

O papel do poder concedente

Retomando a questão indicada alguns parágrafos acima, é possível pensar em situações em que os prejuízos para a sociedade na iminência ou em caso de quebra da concessionária justificassem medidas governamentais com o intuito de tornar o projeto viável do ponto de vista econômico-financeiro. O ponto aqui é a viabilidade da prestação dos serviços de modo eficiente, independentemente de quem seria a concessionária, e não a sustentabilidade empresarial da atual concessionária dos serviços públicos.

Neste caso, toda cautela será necessária, pois a lógica da delegação dos serviços públicos para a iniciativa privada é que certos riscos foram alocados à concessionária, que apresentou uma proposta econômica compatível com a responsabilidade de mitigá-los. Logo, há um ônus argumentativo, que não deve ser menosprezado, para que o poder concedente tome uma decisão de revisão das premissas do projeto ou renegociação do contrato em função de desequilíbrios decorrentes de eventos que mantêm relação com riscos alocados à concessionária.

Antes de renegociar um contrato de concessão em função de desequilíbrios decorrentes de riscos alocados à concessionária, o poder público deve verificar quais das opções produziriam o melhor resultado para a sociedade: renegociar com a atual concessionária, alterando o perfil de risco e de retorno da concessão, ou realizar nova licitação, após a extinção do contrato anterior e a definição do novo perfil do projeto.

O mais recomendável, a princípio, parece ser que o poder público realize uma nova licitação, após a extinção do contrato de concessão, pois mitigar riscos da concessionária por intermédio de recursos públicos, redução de investimentos ou tarifas maiores seria estabelecer um novo negócio, com um novo perfil de risco e de retorno (diferente do que foi licitado).

Na análise de custos e benefícios envolvendo renegociar ou licitar um novo contrato de concessão em função de desequilíbrios decorrentes de riscos alocados à concessionária, o poder público deve levar em consideração, entre outros aspectos, os seguintes:

  • magnitude dos impactos econômico-financeiros do evento decorrente de risco alocado à concessionária (quanto maiores os impactos, mais recomendável seria extinção do contrato atual e, posteriormente, a realização da nova licitação);
  • custo de se realizar uma nova licitação (quanto menor for este custo, mais recomendável seria a extinção do contrato atual e, posteriormente, a realização da nova licitação);
  • interesse do mercado provedor pela nova licitação, tendo em vista o novo perfil de risco e de retorno do projeto (quanto maior o interesse, mais recomendável seria a extinção do contrato atual e, posteriormente, a realização da nova licitação); e
  • contrapartida que a atual concessionária oferecerá para que o(s) risco(s) a ela alocado(s) originalmente seja(m) transferido(s) ao poder público durante o restante do prazo contratual. As contrapartidas poderiam ser: redução tarifária, redução da contraprestação pública ou ampliação dos investimentos (quanto menor a contrapartida oferecida, mais recomendável seria a extinção do contrato atual e, posteriormente, a realização da nova licitação).

É evidente que a possibilidade aventada acima não deve se tornar uma regra no mercado brasileiro de contratos de longo prazo entre o setor público e o setor privado, pois, se assim o fosse, criaria incentivos para que as concessionárias, diante da expectativa de renegociação, não levassem a sério a gestão dos riscos a elas alocados originalmente nos contratos. Entretanto, o Brasil não está imune aos problemas enfrentados atualmente pela Espanha e pelo Reino Unido.

Na eventualidade de que problemas similares surjam no Brasil, fica aqui uma pauta e uma provocação: faz sentido estipular contratualmente que a alocação de riscos do contrato de concessão é imutável? Ou esta temática, a depender das circunstâncias do projeto, comportaria um maior nível de flexibilidade?

Destaco aqui uma cláusula da minuta do contrato de concessão do Entorno Viário da Cidade Administrativa, do Estado de Minas Gerais, atualmente em consulta pública:

23.8.6 O processo de revisão quinquenal terá como objetivo:

(...)

(iii) rever a divisão de riscos estabelecida nas subcláusulas 22.1 e 22.2 deste Contrato, de forma a alterá-las ou a estabelecer novas medidas de mitigação de riscos, caso essa medida seja imprescindível para a perfeita execução do objeto do Contrato;”

A minuta deste contrato de concessão administrativa prevê, expressamente, a possibilidade de que a alocação de riscos estabelecida quando da licitação seja revista durante o processo de revisão ordinária da concessão. Se esta norma for mantida quando o contrato for licitado, haverá espaço para que, durante a revisão ordinária, a alocação de riscos prevista quando da licitação seja renegociada pelas partes, “caso essa medida seja imprescindível para a perfeita execução do objeto do Contrato”. Neste caso, alguns dos conflitos de escolha indicados neste artigo terão que ser enfrentados pelo poder público.

Veremos como será a versão final desta norma. De qualquer modo, uma coisa parece certa: a maior ou menor flexibilidade dos contratos de concessão está na pauta das relações público-privadas no Brasil e em outros países.  

 

(Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do PPP Brasil. O portal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações).

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